Itamar Vieira Júnior
Quando sento quieta para costurar uma roupa velha ou levanto a enxada para devolvê-la de novo ao chão, abrindo covas, arrancando as raízes das plantas, é que esse fio, que tem sido meu pensamento, vai se fazendo trama.
Se o ar não se movimenta, não tem vento; se a gente não se movimenta, não tem vida.
Sem a comunicação era como se nos silenciássemos mutuamente. Era silenciar o que tínhamos de mais íntimo entre nós.
Sofrer, esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a unia de forma irremediável a todo seu povo.
Mas eu persistia e repetia as palavras mais duras, as que não gostamos de ouvir, para mim mesma.
Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração.
Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.
Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade?
Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida.
Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao ver os homens derramando sangue para destruir sonhos.
De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco.
Então sentiu que desde sempre o som do mundo havia sido a sua voz.
Guardava segredos que nunca seriam revelados. Guardava segredos que eram parte do que todos nós éramos naquelas paragens.
Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava da mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado.
Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada.
Durante todos esses anos, somente quando estava só, e mesmo assim muito raramente, ousava dizer algo. Era um tipo de tortura que me impunha de forma consciente.
O diamante se tornou um enorme feitiço, maldito, porque tudo que é bonito carrega em si a maldição.
A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes.
Por que sempre queremos as coisas que parecem estar mais distantes de nós?
O sofrer vinha das coisas que nem sempre davam certo, me fazia sentir viva e unida, de alguma forma, a todos os trabalhadores que padeciam dos mesmos desfavorecimentos.
Sua raiva dizia muito das dores da alma – e sobre estas ela não falou –, aquelas que demoram a curar, as que no meio das lembranças precisamos afastar com um gesto de negação para que não se abata sobre nós o desânimo.
O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo.
Foi embora um fruto, mas a árvore ficou. E suas raízes são muito fundas para tentarem arrancar.