Ítalo Diblasi
Hoje é o aniversário da execução
de García Lorca e se alguma coisa
mudou desde então, foi pra pior
eu estou na Central do Brasil
esperando que alguém me ligue
com uma notícia boa
não tenho vontade de voltar para casa
não tenho vontade de ir trabalhar
não tenho vontade de quase nada
e espero me apaixonar nos próximos minutos
há qualquer coisa de perverso em tudo isso
penso em Antônio Conselheiro
e em seu cadáver profanado
a santidade do mundo
é sempre mais perigosa
que qualquer diabo
uma vez o eremita me sorriu
em uma carta de tarô e desde então
tenho colecionado abandonos
ocorre-me que talvez estejamos
vivendo o apocalipse
você não acreditaria que eu sigo
mentindo e que agora as mentiras
são quase bonitas
apenas porque morremos:
a beleza.
apenas porque morremos
o sol voltará amanhã
exigindo que ao menos
um
de nós
tente de novo
você não acreditaria nas coisas
que tenho tentado provar –
a libido, o corpo, o frio
(sobretudo o frio)
você não acreditaria que
apenas porque morremos
as coisas ainda brilham
que apenas porque morremos
ainda somos necessários
Havia crescido
e era definitivo:
já tão banal o forte gosto
da aguardente
de velhos tempos coisa alguma
nem o corpo
também a pele manifesta seu devir
extingue-se, camaleoa
de máscara em máscara
o bruto corpo da árvore castigada
ao cair das folhas.
Cresci
perdi castelos e pudores
perdi sorrisos, sim
perdi favores
deixei aos sóbrios a vitória
sobre o tempo
ganhei silêncios & temores
ganhei revolta
quando mais queria calma
ganhei suor e não o pão
ganhei o Ar
a plenitude do hemisfério
a anarquia nos trópicos
ganhei perdi
ganhei & perdi
uma metralhadora de espantos
em eterno ir e vir
Sonhei com uma cidade submersa
que desconhecia luz e era habitada
por estranhas criaturas fluorescentes
que sentiam fome e amor,
mas sobretudo fome, e adornavam
as almas com cantos de guerra e
silêncios rompidos à chibata
mas havia alma e isso bastava
porque na superfície nós não tínhamos
nem isso, e o sonho desdobrava-se
num turbilhão de imagens em
que eu via o amor ser inventado
e escurecer e as trevas eram tudo
e eu dormia e desesperadamente
sabia que ninguém viria coroar
minha agonia porque acordávamos
todos os dias e quem quer que
quisesse viver teria de saber
que aqui não se sonha, não,
não se sonha sem custo
e o meu custo, tão doce e terrível,
era a loucura daquela cidade
que já desaparecia outra vez
e a insuportável luz volvia
com a realidade e tudo
o que se podia fazer era secar
os olhos e observar o sol dormir
atrás do mundo
Poema azul
eu reconheço a distância
calada de um coração
essa distância-oceano
que é a distância dos anos,
dos autos, dos atos de fé
do labirinto tecido
à fina seda do sonho
que sonda o poente
eu reconheço a distância
forçada do exílio
do suicídio coroado
nas laudas do tempo,
do vento, do corpo que amei
eu atravessei o grito
dos seus olhos quando até
a palavra tempo cessou
e o relâmpago profetizou,
na escuridão, o retorno
e você diz que eu fiquei mais azul
Eros manda avisar
que não habita parlamento
Que o amor não é
uma social-democracia
Que onde dois são dois
a discórdia faz ninho
Que o livre-arbítrio
é a desculpa da apatia
Que o tirano e o escravo
são gêmeos siameses