Gustave Lebon
Um inconveniente serio das democracias e a mediocridade crescente das pessoas que as governam. Eles so tem necessidade de uma qualidade essencial: estar prontos para falar do que quer que seja, encontrar logo argumentos plausiveis, ou pelo menos ruidosos, para responder a seus adversarios. Espiritos superiores, que querem refletir antes de falar, como um Newton, Pascal, fariam pobre figura nas assembleias parlamentares. Essa necessidade de falar sem refletir elimina dos Parlamentos muitas pessoas de valor solido e de julgamento ponderado.
Eles são eliminados tambem por outros motivos e particularmente por que as democracias não suportam a superioridade daqueles que as governam. Em contato direto com a massa, os eleitos so podem lhe agradar lisonjeando suas paixões e suas necessidades as menos elevadas, lhes fazendo as mais inverossimeis promessas. Por seguir esse instinto tão natural que leva sempre as pessoas a buscar seus semelhantes, as massas vão aos espiritos quimericos ou mediocres e os introduzem, cada vez mais, no seio dos governos democraticos.
Qual a diferença entre a crença e o conhecimento?
Uma crença é um ato de fé de origem inconsciente, que nos força a admitir em bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação, uma doutrina. A razão é alheia, como veremos, à sua formação. Quando ela tenta justificar a crença, esta já se acha formada.
Tudo quanto é aceito por um simples ato de fé deve ser qualificado de crença. Se a exatidão da crença é verificada mais tarde pela observação e experiência, cessa de ser uma crença e torna-se um conhecimento.
Crença e conhecimento constituem dois modos de atividade mental muito distintos e de origens muito diferentes: a primeira é uma intuição inconsciente provada por causas independentes de nossa vontade; a segunda representa uma aquisição consciente, edificada por métodos exclusivamente racionais, tais como a experiência e a observação,
"Temos duas grandes certezas e nada as pode destruir: o prazer e a dor. Toda a nossa atividade deriva delas. As recompensas sociais, os paraísos e os infernos criados pelos códigos religiosos ou civis baseiam-se na ação dessas certezas, cuja evidente realidade não pode ser contestada".
O operário, curvado sob o peso do trabalho, a irmã de caridade, a quem não repugna nenhuma chaga, o missionário torturado pelos selvagens, o sábio que procura a solução de um problema, o obscuro micróbio que se agita no fundo de uma gota d'água, todos obedecem aos mesmos estimulantes de atividade: o atrativo do prazer, o receio da dor.
Sentimentos só entram na consciência após uma elaboração automática praticada em uma obscuríssima zona do inconsciente, qualificada de subconsciente. Os fenômenos inconscientes desempenham na vida mental um papel muitas vezes mais importante que os fenômenos intelectuais. Os primeiros são o substratum dos segundos. O inconsciente é em grande parte um resíduo ancestral. A sua força é devida à circunstância de ser o inconsciente a herança de uma longa série de gerações, a que cada uma juntou alguma coisa.
O inconsciente nos guia na imensa maioria dos atos da vida quotidiana. É nosso soberano, mas um soberano que se pode tornar submisso quando é devidamente orientado. A prática de um ofício ou de uma arte facilmente se exerce, desde que os dirija o inconsciente, educado de um modo satisfatório. Uma moral sólida é o inconsciente bem educado.
O inconsciente representa um vasto depósito de estados afetivos e intelectuais, que constitui um capital físico suscetível de enfraquecer-se, mas que nunca inteiramente se dissipa.
A intuição, origem das inspirações que, num nível excepcional, constituem o gênio, surge de uma maneira integral de um inconsciente preparado pela hereditariedade e por uma cultura conveniente. As inspirações do grande capitão que alcança vitórias e domina o destino, as do pujante artista que nos revela o esplendor das coisas, do sábio ilustre que penetra os seus mistérios, aparecem sob a forma de manifestações espontâneas, mas o inconsciente de que elas nascem havia lentamente elaborado a sua florescência.
Sentimentos se formam no domínio do inconsciente. A sua lenta elaboração pode terminar por manifestações súbitas, que rebentam como um raio, como acontece, por exemplo, com as conversões religiosas ou políticas.
Os sentimentos elaborados no inconsciente não chegam sempre à consciência, ou ai chegam somente depois de diversas excitações; é por isso que, por vezes, ignoramos os nossos sentimentos reais no tocante a seres e coisas que nos cercam. Muitas vezes mesmo os sentimentos e, por conseguinte, as opiniões e as crenças que deles resultam, diferem inteiramente daqueles que supúnhamos. O amor ou o ódio existem algumas vezes em nossa alma antes que sejam suspeitados. Revelam-se somente quando somos forçados a agir. A ação constitui, com efeito, o único critério indiscutível dos sentimentos. Agir é aprender a conhecer a si mesmo. As opiniões formuladas são palavras vãs desde que não sejam sancionadas pelo ato.
O eu afetivo e o eu intelectual são distintos.Assim, não se pode surpreender que uma inteligência muito elevada coexista com um caráter muito baixo. Mostrando sem dúvida a inteligência e a instrução que certos atos desonestos custam mais do que rendem, raramente se verá um homem instruído praticar furtos vulgares; mas, se possui uma alma de larápio, ele a terá sempre, a despeito de todos os seus diplomas, e a utilizará em operações tão pouco morais, porém menos perigosas e que ofereçam mais seguro lucro.
Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos honestos relatórios, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói.
As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecer a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o seu “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte, elementos inconscientes, quase inacessíveis à observação
O único meio de descobrir o seu “eu” real é a ação. Cada qual só se conhece um pouco depois de ter observado a sua maneira de agir em circunstâncias determinadas. Pretender adivinhar como procederemos numa situação dada é muito quimérico.
O marechal Ney, quando jurou a Luis XVIII que lhe traria Napoleão numa gaiola de ferro, estava de muito boa fé, mas não se conhecia; um simples olhar do Imperador bastou para mudar a sua resolução; o infortunado marechal pagou com a vida a ignorância da sua própria personalidade. Se estivesse mais familiarizado com as leis da psicologia, Luiz XVIII lhe teria provavelmente perdoado.
A lógica racional manifesta-se pela associação, mediante a reflexão e de acordo com o mecanismo precedentemente indicado de representações mentais ou de palavras que as traduzam.
Ela foi considerada durante muito tempo como base das nossas crenças. Admitimos, ao contrário, que a lógica racional não suscitou nenhuma crença. O seu único papel possível consiste em abalá-las.
Mas, se o papel da lógica racional é nulo na gênese da crença, é, ao contrário, capital na constituição do conhecimento. Todo o edifício das ciências e o colossal desenvolvimento da indústria moderna, que é a sua conseqüência, repousam nela.
Não se poderia, pois, exagerar a sua força; cumpre, no entanto, saber reconhecer também os limites que ela ainda não ultrapassou.
Os fenômenos da vida e do pensamento sempre se lhe mantêm fechados. O seu domínio é o da matéria bruta, isto é, momentaneamente estabilizada pela morte ou pelo tempo. Sobre os fenômenos que representam um movimento constante, como a vida, ela projetou luzes muito incertas.
Reinando a ciência, visivelmente sem rival no domínio do conhecimento, durante muito tempo se supôs que a lógica intelectual, de que ela deriva, serviria para explicar a gênese e a evolução das crenças.
Porém, os seres atuam antes de raciocinar e compreender e são, por conseguinte, guiados nos seus atos por outras formas de lógica.
Compenetrado dessa evidência reconhece-se que a lógica racional desempenha um papel bastante secundário na vida dos indivíduos e dos povos.
Não é necessário raciocinar para agir, e menos ainda compreender. O mais modesto inseto atua como deve, sem se preocupar com a nossa lógica.
A compreensão e a razão são formas da atividade dos seres inteiramente independentes da ação. Elas não fazem mais do que obstá-la, mostrando em demasia os seus perigos.
Graças às suas impulsões afetivas e místicas, os homens mais vulgares podem agir sem que tenham a menor suspeita quanto à origem dos seus atos. É inútil tentar com eles o emprego de argumentos de ordem intelectual. Em conseqüência da sua diminuta faculdade de compreensão, eles lotam um desprezo categórico a tudo quanto é superior à sua inteligência. Querer incutir-lhes no espírito certas idéias racionais seria imitar a criança que procura introduzir uma laranja num dedal. Cumpre saber medir a capacidade, geralmente restrita, do cérebro dos indivíduos e dos povos, antes de tentar introduzir nele algumas verdades racionais.
O papel da lógica racional no governo dos povos foi sempre muito fraco e somente se manifesta nos discursos. Não é, a razão, porém o sentimento que os comove e, por conseguinte, que os conduz.
Para mover, cumpre comover.
Na luta entre a lógica racional e a lógica afetiva, a primeira é quase sempre vencida.
Está longe o momento em que o mundo será conquistado pelo raciocínio filosófico. Ele tem sido sempre, ao contrário, até aqui, perturbado por crenças que a lógica racional desdenha, mas que não pode absolutamente combater.
Gustave Lebon - As Opiniões e as Crenças
A aptidão em dominar os impulsos afetivos representa um formidável elemento da civilização. Nenhuma vida social é possível sem essa base essencial de toda a moral.
As ações inibidoras mantidas pelo costume, pela moral e pelos códigos representam, não uma luta contra os sentimentos e a razão, mas entre os sentimentos diversos que a razão põe em presença.
Os códigos civis ou religiosos sempre tiveram por objetivo principal exercer uma ação inibidora nas manifestações de certos sentimentos.
Toda a civilização traduz constrangimento e sujeição. Aprendendo, sob a rigorosa lei das primeiras obrigações sociais, a dominar um pouco as suas impulsões, o primitivo desprendeu-se da animalidade pura e chegou à barbárie. Forçado a refrear-se mais, ele se elevou até à civilização. Esta só se mantém enquanto persiste o domínio do homem sobre si mesmo.
A aptidão em dominar os impulsos afetivos representa um formidável elemento da civilização. Nenhuma vida social é possível sem essa base essencial de toda a moral.
As ações inibidoras mantidas pelo costume, pela moral e pelos códigos representam, não uma luta contra os sentimentos e a razão, mas entre os sentimentos diversos que a razão põe em presença.
Os códigos civis ou religiosos sempre tiveram por objetivo principal exercer uma ação inibidora nas manifestações de certos sentimentos.
Toda a civilização traduz constrangimento e sujeição. Aprendendo, sob a rigorosa lei das primeiras obrigações sociais, a dominar um pouco as suas impulsões, o primitivo desprendeu-se da animalidade pura e chegou à barbárie. Forçado a refrear-se mais, ele se elevou até à civilização. Esta só se mantém enquanto persiste o domínio do homem sobre si mesmo.
Um sentimento não praticado se atrofia. A história dos povos fornece, nesse particular, numerosos exemplos. Os nossos instintos guerreiros, tão desenvolvidos na época da Revolução e do Império, acabaram por dar lugar a um pacifismo e a um antimilitarismo cada dia mais divulgados, não somente nas massas, como também entre os intelectuais. Daí resulta este estranho contraste: à medida que as nações se tornam mais pacificas, os seus governos não cessam de aumentar os armamentos.
A necessidade de refrear os sentimentos nocivos à sociedade por meio de outros sentimentos fixados pela educação, a moral e os códigos, constitui, o princípio fundamental da vida coletiva, e nunca em vão os povos o desconhecem.
Ninguém se liberta dos sentimentos que o meio social tinha penosamente conseguido conter, sem criar anarquia. O seu primeiro sintoma é um rápido acréscimo da criminalidade, tal como o que hoje se observa. É favorecido, aliás, pelo desenvolvimento do humanitarismo, que paralisa a repressão e tende, por conseguinte, a destruir todos os freios.
A nossa democracia atual sofre cada vez mais as conseqüências da supressão dessas ações inibidoras, as únicas que podiam contrabalançar os sentimentos anti-sociais.
O ódio das superioridades e a inveja, que se tornaram os flagelos da democracia e ameaçam a sua existência, derivam de sentimentos muito naturais para que não tivessem subsistido sempre. Mas, nas sociedades hierarquizadas do passado, a sua manifestação era difícil.
Tendo adquirido hoje livre impulso, incessantemente alentados por políticos ávidos de popularidade e universitários descontentes da sua sorte, esses sentimentos exercem constantemente a sua desastrosa tirania.
Devido a grande dissociação das ações inibidoras, as desagregações sociais são consequências da fraqueza que o medo determina.
Diante da fraqueza dos códigos, progressivamente se criou a noção de que empregar a ameaça e a ação direta era um meio seguro de alterar leis outrora consideradas como invioláveis.
Uma sociedade subsiste graças ao fator de manter a convicção hereditária de que cumpre respeitar religiosamente as leis em que se funda o organismo social.
A força que os códigos possuem para impor a obediência é, sobretudo, moral. Nenhuma potência material conseguiria tornar respeitada uma lei que toda a gente violasse.
Se um gênio malfazejo quisesse destruir uma sociedade em poucos dias, bastar-lhe-ia sugerir a todos os seus membros a recusa de obedecer às leis. O desastre seria muito maior do que uma invasão a que se seguisse a conquista. Um conquistador limita-se geralmente, com efeito, a mudar o nome dos senhores que dispõem do poder, mas é seu interesse conservar cuidadosamente os quadros sociais cuja ação é sempre mais eficaz do que a dos exércitos.
Destruir a crença na necessidade do respeito aos freios sociais, representados pelas leis, é preparar uma revolução moral infinitamente mais perigosa do que uma revolução material. Os monumentos saqueados rapidamente se reconstroem, mas para refazer a alma de um povo, são necessários, em muitos casos, alguns séculos.
Combatendo a tradição em nome do progresso e sonhando destruir a sociedade para apoderar-se das suas riquezas, os sectários não vêem que a sua vida é um estreito tecido de aquisições ancestrais, sem as quais não viveriam um só dia.
Sabe-se como finalizam sempre semelhantes tentativas. Será, entretanto, preciso suportá-las ainda sem dúvida, pois só a experiência repetida instrui. As verdades formuladas nos livros são palavras vãs. Só penetram profundamente na alma dos povos ao clarão dos incêndios e ao troar dos canhões.
Nas opiniões diárias, a ação da razão é muito pouco eficaz. Observam-se, com efeito, incessantemente opiniões divergentes sobre assuntos em que a razão parecia dever determinar conclusões idênticas.
Concebe-se perfeitamente essas divergências quando se conhece o papel dos elementos místicos e afetivos na formação dos nossos conceitos.
As divergências de opinião não resultam, como por vezes supomos, das desigualdades de instrução daqueles que as manifestam. Elas se notam, com efeito, em indivíduos dotados de inteligência e de instrução equivalentes. Disso se convencerá quem percorrer as respostas aos grandes inquéritos coletivos destinados a elucidar certas questões bem definidas.
As divergências geram contradições. Contradições da mesma espécie invariavelmente se manifestaram em todos os assuntos e em todos os tempos. Para chegar à ação, o homem teve, entretanto, de escolher entre essas opiniões contrárias. Como operar tal escolha, sendo a razão muito fraca para determiná-la?
Existem dois métodos para se fazer isto: aceitar a opinião da maioria ou a de um único, escolhido como mestre. Desses dois métodos decorrem todos os regimes políticos.
Poucos votos de maioria, ou mesmo uma maioria considerável, obtida por uma opinião, não a tornará, certamente, superior à opinião contrária. Um juízo isolado, imposto obrigatoriamente, não será também sempre o melhor. A escolha de um ou outro método é, contudo, necessária para sairmos das indecisões que são contrárias à verdade de agir.
As opiniões de um espírito eminente são, em geral, muito superiores ao juízo de uma coletividade, mas, se o espírito não for eminente, as suas decisões poderão ser muito perigosas. A história da Alemanha e a da França fornece numerosas provas das vantagens inconvenientes destes dois métodos: a tirania individual e a tirania coletiva.
Uma crença política ou religiosa constitui um ato de fé elaborado no inconsciente e sobre o qual, apesar de todas as aparências, a razão não tem influência. A crença chega às vezes a um grau de intensidade tal que nada pode se opor a ela. O ser humano hipnotizado por sua fé se torna então um apóstolo, pronto a sacrificar seus interesses, sua felicidade, mesmo sua vida, para o triunfo dessa fé. Pouco importa o absurdo de sua crença, ela é para ele uma verdade deslumbrante. As certezas de origem mística possuem esse maravilhoso poder de dominar inteiramente os pensamentos e de só serem influenciadas pelo tempo.
Pelo único fato de que ela é considerada como verdade absoluta, a crença se torna necessariamente intolerante.
Assim se explicam as violências, os ódios, as perseguições; cortejo habitual das grandes revoluções políticas e religiosas.
A característica do espírito místico consiste na atribuição de um poder misterioso a seres ou forças superiores, concretizados sob a forma de ídolos, de fetiches, de palavras e de fórmulas.
O espírito místico está na base de todas as crenças religiosas e na maior parte das crenças políticas. Estas últimas desaparecem frequentemente se são desprovidas dos elementos místicos que são seus verdadeiros suportes.
Transplantada para sentimentos e impulsos passionais que ela orienta, a lógica mística dá sua força aos grandes movimentos populares. Pessoas muito pouco dispostas a se matar racionalmente, sacrificam facilmente sua vida por um ideal místico que se tornou seu objeto de adoração.
Sempre prontos a matar, para propagar sua crença, os místicos de todas as eras empregam o mesmo meio de persuasão assim que se tornam os senhores.
A mentalidade revolucionária
As sociedades de cada época sempre contiveram um certo número de espíritos inquietos, instáveis e descontentes, prontos para se insurgir contra uma ordem qualquer de coisas estabelecidas. Eles agem pelo simples gosto da revolta e, se um poder mágico realizasse sem nenhuma restrição seus desejos, eles também se revoltariam.
Essa mentalidade especial resulta frequentemente de uma falta de adaptação do indivíduo a seu meio ou de um excesso de misticismo, mas ela pode ser também uma questão de temperamento ou provir de problemas patológicos.
A necessidade de revolta apresenta graus de intensidade muito diversos, desde o simples descontentamento manifestado em palavras contra as pessoas e as coisas até à necessidade de destruí-los. Às vezes o indivíduo volta contra ele mesmo o furor revolucionário que ele não pode exercer de outra maneira. Existem radicais que, não contentes com os incêndios e bombas lançadas ao acaso nas multidões, acabam mutilando-se a si mesmos.
Esses perpétuos revoltados são geralmente seres sugestionáveis cuja alma mística é obcecada por ideias fixas. Apesar da energia aparente que parecem indicar seus atos, eles têm uma personalidade fraca e são incapazes de se dominar, bem como resistir aos impulsos que os governam. O espírito místico com que são animados fornece pretextos a suas violências e os faz considerarem-se como grandes reformadores.
Em tempo normal, os revoltados de cada sociedade são contidos pelas leis e pelo meio - em uma frase: por todos os freios sociais - e permanecem sem influência. Logo que se manifestam períodos de turbulências, esses freios enfraquecem e os revoltados podem dar livre curso a seus instintos. Eles se tornam então os líderes habituais dos movimentos. Pouco lhes importa o motivo da Revolução, eles se matarão para obter a bandeira vermelha, a bandeira branca ou a libertação de um país que ouviram vagamente falar.
O espírito revolucionário não é sempre levado até o extremo de se tornar perigoso. Quando, ao invés de ser originado de impulsos afetivos ou místicos ele tem uma origem intelectual, ele pode se tornar uma fonte de progresso. É graças a espíritos suficientemente independentes para serem intelectualmente revolucionários que uma civilização consegue se livrar do jugo das tradições e do hábito, quando ele se torna muito pesado. As ciências, as artes, a indústria progrediram sobretudo através deles. Galileu, Lavoisier, Darwin, Pasteur foram revolucionários.
Se não é necessário para um povo possuir muitos espíritos iguais a esses, lhe é indispensável ter alguns. Sem eles a humanidade habitaria ainda as primitivas cavernas.
A ousadia revolucionária que leva a descobertas implica em faculdades muito raras. Ela necessita particularmente de uma independência de espírito suficiente para escapar da influência das opiniões correntes e um discernimento que permite captar, sob as analogias superficiais, as realidades que elas dissimulam. Esta forma de espírito revolucionário é criadora, enquanto que aquela examinada mais acima é destruidora.
A mentalidade revolucionária poderia então ser comparada a certos estados fisiológicos úteis na vida do indivíduo, mas que, exagerados, assumem uma forma patológica sempre nociva.
Nunca é demais repetir que o verdadeiro guia da pessoa é a estrutura moral edificada pelos seus ancestrais.
Habituados a viver numa sociedade organizada, estabelecida sobre códigos e tradições respeitadas, nós não concebemos facilmente o estado de uma nação privada de uma tal estrutura.
Em nosso meio, nós só vemos frequentemente seus aspectos desagradáveis, esquecendo facilmente que uma sociedade só é possível com a condição de impor certos entraves e que o conjunto das leis, dos costumes, dos hábitos, constitui um freio aos instintos naturais de barbárie, que não desaparecem jamais inteiramente.