Graciliano Ramos
Se a única coisa de que o homem terá certeza é a morte; a única certeza do brasileiro é o carnaval no próximo ano.
Quando se quer bem a uma pessoa a presença dela conforta. Só a presença, não é necessário mais nada.
Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costume de viverem os machos apartados das fêmeas. Quando se entendem, quase sempre são levados por motivos que se referem ao sexo. Vem daí talvez a malícia excessiva que há em torno de coisas feitas inocentemente. Dirijo-me a uma senhora, e ela se encolhe e se arrepia toda.
Se não se encolhe nem se arrepia, um sujeito que está de fora jura que há safadeza no caso.
Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas.
Cartas de amor a Heloísa
Dizes que brevemente serás a metade de minha alma. A metade? Brevemente? Não: já agora és, não a metade, mas toda. Dou-te a minha alma inteira, deixe-me apenas uma pequena parte para que eu possa existir por algum tempo e adorar-te.
Comovo-me em excesso, por natureza e por ofício, acho medonho alguém viver sem paixões.
Mas é bom um cidadão pensar que tem influência no governo, embora não tenha nenhuma. Lá na fazenda o trabalhador mais desgraçado está convencido de que, se deixar a peroba, o serviço emperra. Eu cultivo a ilusão.
É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço.
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício.
Lá estão novamente gritando os meus desejos. Calam-se acovardados, tornam-se inofensivos, transformam-se, correm para a vila recomposta. Um arrepio atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre o papel. Naturalmente são os desejos que fazem isto, mas atribuo a coisa à chuva que bate no telhado e à recordação daquela peneira ranzinza que descia do céu dia e dias.
Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada. Da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal.
Os escritores brasileiros, e falo dos ficcionistas de agora e mesmo os do passado, podem no meu entender ser divididos em duas categorias: os que têm uma 'maneira' de escrever, e são poucos, e os que têm 'jeito', que são alguns mais numerosos. O resto é porcaria.
Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano.
Só posso escrever o que sou. E se os personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só.
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição.
Se a igualdade entre os homens - que busco e desejo - for o desrespeito ao ser humano, fugirei dela.
Não há talento que resista à ignorância da língua.
"Nunca presto atenção nas coisas, não sei para que diabo quero olhos. Trancado num quarto, sapecando as pestanas em cima de um livro, como sou vaidoso, como sou besta!”
( em 'Angústia', 1936.)
O Chefe Político
Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes: o Executivo, que é o dono da casa, o Legislativo e o Judiciário, domésticos, moços de recados; gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das visitas. Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável, mas que é tacitamente considerado o sumário dos outros três. (...) Aí está o rombo na Constituição quando ela for revista, metendo-se nela a figura interessante do chefe político, que é a única força de verdade. O resto é lorota.”
(Graciliano Ramos, em artigo de 1915, no Jornal de Alagoas)
Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas
com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos
estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei,
ainda nos podemos mexer.