Graça Pires

Encontrados 10 pensamentos de Graça Pires

No meio das palavras

Quando, nos lábios, começa um continente,
suspenso no apelo líquido dos beijos,
há um barco que cresce nos meus olhos
e, entre búzios verdes, escrevo água.
Nunca a brisa se demora entre as dunas,
onde os barcos navegam sobre a espuma.
Tudo é secreto, se maio se repete
nas marcas da pureza recusada.
Um rosto ou um rio me fascinam,
quando a raiva e o sossego
me revelam a nascente
e, no meio das palavras,
procuro apenas um gesto
ou uma sombra.

Graça Pires

Quando Anoitece
Quando anoitece
contorno no meu rosto
o perfil do dia que passou
e tudo o que não sou
me contradiz.
Quando anoitece
atravesso um labirinto
caiado de paixão,
pretexto circular
da minha fé.
Quando anoitece
faço emergir do abismo
um instinto quase secreto
e fujo da noite,
em vertiginosa simetria com o vento,
como se fosse um equívoco
esperar a madrugada
com a mesma lentidão
de um acto íntimo.
Contra um muro branco
esta lonjura gémea do vento.
Uma casa ou um regaço
alternando a desordem
de corpos molhados
numa dicotomia simulada
quando o prazer
é o reflexo nítido
de um coágulo de azul
queimado sobre madrepérolas.
São corais que no fundo da água
não quebram as vagas silvestres.
Nasci agora
enquanto uma andorinha
baloiçava no espelho
atravessado de pólen.
Sou, sílaba por sílaba,
o luto ou a negação
de desumanos deuses.
Quando anoitece ...

Graça Pires

Interioridade

Aqui estou, cercada de mim,
melancolia trazida
do interior de um bosque,
silhueta a preto e branco
na figuração de um pássaro em vôo lento.
Há quanto tempo,
só eu sei quanto,
as amarras de um barco
se quebraram,
no interior frágil
do instante em que fui vento,
ou apenas um abandono breve,
como as mãos no acto de dar.
No ângulo do grito e da língua
se explica a leveza das lágrimas,
circunfluência no interior das pálpebras,
longínquo lago na cintura dos lábios.
Cheguei ao lugar onde se cruzam
todos os ventos sem hálito
e chamo pelo nome os frutos e a fome,
para que ninguém se comprometa
ao tocar nos meus ombros.

Graça Pires

Expressão

Dentro da curva inesperada
dos meus braços,
transbordam os gestos
numa espiral imperceptível.
Nas pontas dos meus dedos
se alonga a neblina
que deriva do inverso da loucura
quando prendo nos dentes
a superstição da lua
ou esboço no riso
a cumplicidade dos espelhos
timidamente transparentes
para dizer que só pelo silêncio
se vence o labirinto das palavras
e se mede a solidão.

Graça Pires

Lugar de Junho

É melhor não dormirmos
sob o árido labirinto da tristeza.
À nossa frente existe um pórtico
purificado por uma névoa de sons.
Vamos transgredir o limiar do absurdo,
porque encontramos um abrigo musical,
onde ninguém pode separar as nossas bocas
o percurso das águas outonais.
É verde o germe do sol nos nossos olhos
e, sem querer, a sombra de um pretexto
emerge do assombro de nós próprios
como um regresso plural da inocência.
Estamos num lugar de Junho
e qualquer sinal de ausência
pode ser apenas um veleiro
que partiu dos nossos dedos.

Graça Pires

Inserida por suallinda

Graça Pires
(Figueira da Foz, 22 de Novembro de 1946)
É uma poeta portuguesa.
É licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Editou o seu primeiro livro em 1988, depois de ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro Poemas.

Inserida por suallinda

Refaço a espera

Veio, devagar, um pássaro
sobrevoar minhas mãos
tão adiadas das tuas.
Refaço a espera.
Digo o teu nome para que voltes.

Tão cúmplice, as palavras

Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,

de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.

Amo as açucenas

Amo as açucenas na branquíssima
vertigem do princípio do mundo.
Ninguém pode amá-las assim
nas madrugadas de linho e de nácar.
Ninguém subiu as vertentes da colina
mais íngreme com um vestido de noiva
amarrado ao corpo.
O abandono recortado no ar.
Os desejos entorpecidos na alvura dos seios.
Os guizos das cabras reclamando o cio.
A cera das colmeias na greta dos lábios.
O fascínio da luz a incidir nas hastes mais altas.

⁠"usei nos pulsos as pulseiras
interditas à luxúria."

Inserida por fatima_pires_1