Gabriel Novais
Sobre ser mais um
passa rápido
entre os prédios e faixas de pedestres
medo nos olhos
cheios de coragem
os pés
mais um na fila do pão
procurando o bilhete premiado
sem rosto
sem nome
sem chulé
sem manias
sem eu
apenas pombo
pombo de cidade grande
cheio de piolhos que ninguém vê
mas que mesmo assim
coçam
Ato dois
Entramos no carro, éramos eu, minha mãe e minha vó, beirava seis da tarde, e a ave Maria chorava na rádio. Meus olhos caducavam com as luzes dos carros que andavam com dificuldade, tinha apenas alguns anos, uma década e um pouco mais, não tinha amigos, não sabia nada sobre células vegetais nem sobre morfologia das palavras, sabia inventar histórias e rabiscar em folhas brancas e tristes.
Trezentos e sessenta e dois dias se passaram, novamente no carro, éramos eu e meu pai, ninguém falava, não havia rádio. Segurava minha mochila, com algumas mudas de roupa e lápis coloridos, devagar íamos para a outra casa. Minha irmã e sua esposa me esperavam, aguardando minhas histórias inventadas do mês passado, sempre sorridentes e falantes, vestidas de amarelo e rosa.
Meu primeiro livro com mais de trezentas e cinquenta páginas, lido sem pedido da escola, sem incentivo da minha mãe, encontrado na biblioteca. Pelos cantos por mais de uma semana, sem trocar muitas palavras, sem sorrir muito, perdia a vontade de criar histórias. Não era mais tão fácil, agarrado nas regras e no papel. Aprendi sobre células vegetais e morfologia das palavras, ganhei também alguns amigos, e perdi os lápis coloridos.
Mais uma feira
um dia de palavras que saem como pluma
e me atigem como flecha
uma segunda borrada de mim
manchada de eu
uma primeira onde sou mais
menos feira
mais alho poró
Usina nuclear
ouvi falar sobre o amor atômico
que depois vira lixo
tomei pra mim
olhei pro céu
voltei à terra
infectado pela radioatividade
Casa Circo
saudades da casa circo
onde tem palhaço bebado
e choro dissimulado
minutos
minutos de espetáculo
minutos comendo minutos
minutos de silêncio, esses poucos
minutos de familia
Pescamor
na tua renda
me pesca feito peixe
meu olhar menino moço
amadurece dentro do seu
que me faz ser gente grande
que me faz ser quem vou ser
macia feito mulher
doce feito menina
fascínio meu
e de outras também
Juventude
Preocupado meus dias passam
feito um vagão de trem.
Para onde vai? De onde vem?
A condução não me responde
e calado me satisfaço observando os passarinhos.
Também não sabem muito.
Cres
ser
Quem me dera saber
o que há de ser.