Fernando Paixão
Tire-se o número e o mês
e o ano
a este clarão diário.
Tire-se a manhã
que o arremessa
- parábola no olho,
as horas fogem de si mesmas.
Sem as paredes noturnas
onde as tardes se acomodam
vencidas.
Sem o impulso de ontem e amanhã
a girar-lhe o eixo:
Tire-se o número e o mês
e o ano
ao que é vertente
Sempre
_________ agora.
Á mesa do jantar ele se cala.
Que outros falem demasiado
remoendo os chocalhos das próprias ideias
não o incomoda tanto.
Conheceu muitas borras de palavras
e teve de discernir a sós
os afetos que lhe serviram de caminho
ao lado de Dora, sempre.
Tantos jantares gastos em torno a
opiniões
essa esgrima imaginativa
a sentenciosa: ele já o sabia.
Os outros falam
e ele basta um aceno de cabeça.
Um resto de hora
varre os telhados
em despedida.
Como outros calendários
sucumbiram
em outros quartos de hotel.
Idêntica mentira: a noite
alonga o corpo da fera
no escuro das velhas ruas.
A viagem termina. O dia
fecha os olhos á própria água.
Devagar: sem protocolo.
O mar secará um dia
toda a sua sede.
O mar perderá todo o sal
num longo dia azul.
Sem sabor e sem ímpeto
o mar de ondas molengas
ficará desativado
de qualquer romantismo.
Plebeu e plausível
descortinará outro infinito
que não este gelatinoso
mistério-matriz.
Á força da metamorfose
o mar se desmarinhará
desmaiando aos poucos
sobre si mesmo.
Não perca:
Grande Teatro de marionetes!
Amanhã. Na orla da praia.
Adultos e crianças vão guiados
por um andor branco e comovente.
Formam
duas fileiras de mãos atenciosas.
A céu aberto arremessam as vozes
contra a linha dos montes.
A lentidão dos passos
imita o arco dos antepassados.
Até que o vente apaga
o dedo em luz.
Soluço. Desamparo.
Como um segredo
a avó me repassa o fogo.
Sentado junto ao fogão
cúmplice da lenha que arde
assisto ao pé do fogo
os brotos infindáveis.
Observo chamas saltadas.
Sorvo delas um líquido boreal
derramado para cima.
As brasas me contam histórias
que logo esqueço.
Envelope em bolhas de silêncio.
De manhã:
gosto de amora na boca
o vermelho selado
na ponta dos dedos.
Das cores
saem os pensamentos.