Fernanda Luchiari
Um par de calçados trocados
A gente é uma combinação que não foi feita pra combinar. Somos um par de sapatos de número, modelo, cor e estampa diferentes, que ninguém – nem eu mesma- diria que, calçados, ficaria bom e daria pé.
Tanto pé, que quando o seu anda na frente - o bastante para impor alguma distância -, e eu me inspiro na sua personalidade, tiro uma caneta do bolso, da bolsa ou da orelha e procuro um papel, uma notinha de supermercado jogada na bolsa, um guardanapo ou papel de pão só pra escrever o que tá pronto pra tomar forma no papel, mas tá saindo com um peso que só existiria mesmo se esses dias fossem como são - dias carregados de meses.
A partir do pensamento escrito, então, você, em algum instante do meu tempo, está próximo da minha realidade mais factual. A realidade em que sou eu, o café e os bocejos pelas pessoas. O silêncio - e, apesar de tudo, as palavras do papel em pedaço.
A minha vida, se eu pudesse coordenar, seria uma aliteração fundida em: Planta, pincéis e pintura, piano, poesias. E como eu posso, a minha vida involuntariamente é coordenada por você- porque ainda falta eu decidir como quero fazer o que quero fazer comigo sozinha no mundo.
E mesmo quando está longe, só o que sei é que não é o hábito de arrancar cutículas junto das “pelinhas semi-soltas” dos lábios, com os dentes, que incomodam... São as minhas interrogações e a sua ausência que descontrola a minha calma e altera as disposições de tudo. Quando está longe eu sinto o seu cheiro e ninguém consegue inala-lo tão bem quanto eu. A dor é inerente ao amor ou à busca pela felicidade? Às vezes acho tristemente que sim, que ambos. Às vezes, felizmente, sim.
E é por isso que, tantas vezes, eu posso anular o que eu sou - esse sapato alternativo, mas velho e com estampas batidas- para entender, viver e amar você.
A noite
O olhar contornado pelo dia e, o recorte dele, desperto à noite - noite que sussurra o sono que sonha rasteiro e que resiste a você.
O relógio apita de hora em hora o tempo que vai; o tempo que se esvai fora destas linhas.
A madrugada toda e eu fumando o café, tomando o garoto em palavras de gole em gole.
Pasma, porque não traduzo o meu silêncio para além de três frases e uma oração, o mesmo silêncio parece ensaiar o paladar, para a chegada de algum outro significado emudecido, vindo da garganta.
Toda a abstração do mundo real incidida entre os olhos recompostos, os olhos desprovidos e os olhares avulsos. Trêmula, a janela responde a força que o vento faz. E a luminária me esquenta um lado do corpo, em especial. A garoa que cai, gradativamente, dá som ao silêncio implícito no quarto, mas enegrece mais a noite.
O ranger e o chorar de coisas, o passar da hora... Agora cantam sob outro volume anunciando a existência do silêncio sóbrio e comovido consigo.
São três e vinte e duas da manhã.
Ao menos escrevo
Continuo fria e dispersa. Colocara a culpa no medo, agora coloco na covardia. Nada se aproxima dos planos de menina, nem dos planos “menos menina”. E o que eu queria era ter palavras para mentir que estava vedada e não vi as coisas acontecem (nem vi a verdade contida nos meus anseios).
Desejava namorar alguém que me fizesse explodir de paixão (desatada em olhos alheios). Desejava ter ciúmes. Desejava morrer de ciúmes, sem bem conseguir dormir; pasmar de amor, sem conformismo e com ingenuidade; passar dia, noite, e madrugada com o pensamento preso, em horas soltas; roer as unhas de ansiedade para aquele alguém chegar, de ansiedade para saber se o futuro imitará o presente na sensação de que, todos os dias, a felicidade será buscada, ainda que dolorosamente. Desejava ser castigada pela força de vontade em não esmorecer.
Desejava imaginar coisas ridículas; não perder traços de ímpetos infantis enquanto (incomensuravelmente) apaixonada. Desejava dois minutos de apreciação, depois de horas de saudade.
Desejava, e desejava tanto. Mas não esperava que o desejo precisasse ser confeccionado com as minhas mãos.
Não esperava lágrimas de espera - de espera vazia (mesmo depois das lágrimas). Não esperava o costume dos meus olhos e o compensar do meu coração; que a mágoa viesse seca a ponto de ser narrada e escrita no papel, e que atribuiria a culpa do meu mau desempenho, frente ao que aspiro, a mim mesma!
Não esperava que minhas metas tornariam-se objeções vivas, vivas e latentes, racionais e distantes. São tão minhas as metas... Não porque são únicas, mas porque os sintomas, as reações que causam, são tão minhas!
O presente nada mais é que uma oportunidade de projetar o que há de vir. O presente que não é uma condição para o futuro, não é o meu tempo. É minha náusea.
Sinto-me livre, porque já vivi acorrentada à angústia de dizer - ainda angustio respostas pendentes com esforços que não bastaram para alcançar os desejos graves e intensos, sem repouso, sem ornamentos.
Esperava, pois não tivera hora marcada com os acontecimentos.
Agora é sim, ou não: Nada entre, nada mais.
Façamos silêncio, meu amor.
Talvez na fala você falhe
Talvez os seus olhos levem os meus a... fecharem-se.
Talvez a verdade seja verossímil
E a abstração leve-nos a ver.
Talvez a liberdade emancipe-se no mundo imaterial.
Talvez o pensamento emancipe-te do mundo
E a concordância seja precursora da convivência
E a companhia, um empirismo inerente.
Talvez o devaneio destine ao amor... Talvez à apreensão.
Talvez nossa relação
Resuma-se ao...
Silêncio?