Fabrício Corsaletti
História das demolições
A história das demolições
a história trágica das demolições
não acontece como no cinema
a vida não tem trilha sonora
as paredes caem silenciosamente
(no máximo a pancada dos martelos)
o chão varrido fica melhor
(o passado não voltará no ladrilho novo)
lembrar o que quer que seja é inútil
as imagens da memória são ruins
o que ficasse em nós seria a esperança
mas o que existe não exige lembrança
o que morreu está definitivamente morto
não há sequer a vontade de chorá-lo
o luto mesmo é impossível
Everything is broken
a rua está quebrada
minhas botas
estão quebradas
minha voz
está quebrada
meu pensamento
está quebrado
as portas estão quebradas
o despertador está quebrado
a noite está quebrada
a manhã
será quebrada –
há uma pessoa no mundo
que não está quebrada
e eu estou ao seu lado
como se não estivesse quebrado –
a alegria
está quebrada
o cansaço está quebrado
tudo está quebrado
Lígia e os idiotas
naquela época eu vivia cercado de idiotas
para onde olhasse enxergava idiotas
no espelho flagrava um perfeito idiota
a multidão do colégio era um desfile de idiotas
Lígia não era idiota
nunca fui seu amigo porque acabei me aproximando de idiotas
e fiquei mais idiota
e Lígia não gostava de idiotas
hoje sei que existem muitas Lígias no mundo
mas sei também que existem idiotas
e por mais que eu tente me dizer que essas coisas andam juntas
que dentro de cada um existe uma Lígia e um idiota
aprendi que é preciso ficar perto de Lígia
e longe dos idiotas
quem escreve para ser eterno
mais cedo ou mais tarde se desapontará
até mesmo Shakespeare está com os dias contados
o futuro chegou, veio quebrado
o carteiro parece deprimido
meu café da manhã é um comprimido
e o jornal atual do mês passado
você escolheu o marinheiro errado
estou cheio de cera nos ouvidos
toda canção é feita de ruídos
em breve atracaremos do outro lado
o vento é doce, os animais, divinos
você lamenta, eu lamento também
sua analista acha que eu não presto
amanhã vou comprar um violino
libertar o penúltimo refém
rasgar as cartas e queimar o resto