Erna Barros
Pertencemos ao nosso pensamento da forma mais contrária e perfeita a nós mesmos.
Ou pensamos nossas fronteiras renovando-as, ou elas pensam sobre nós destruindo-nos.
Se o papel aceita toda escrita, aceitamos todos os borrões, vírgulas e todas as reticências a que nos submetemos em nossa vã experiência de viver.
Sossego imperfeito esse do mundo a contradizer o que ainda não foi dito.
Felicidade ameaçada essa da completude.
Incompleto somos nós, a cada segundo que respiramos.
E a única coisa que nos sustenta é o que nos derruba na distração.
O sorriso guiado fora de nós é ainda o mais importante.
Porque mesmo distraídos, atiramos ao mundo o calor daquilo que somos.
Apesar de estar aos cuidados constantes de meus múltiplos confrontos, minhas surpresas tornan-se o começo de um tempo sem pausas. Indeterminadas origens essas que me deixam ser, enquanto ainda espero o êxito de um alerta, de um passado já ido, do que ainda será, do que puramente é.
Nossa espera nos encara redimida e insistente. Nada está perdido, está sonhado e elevado em nível de urgência em relação a todo nosso esforço rotineiro. Aqui, entre o que nos resta, determinamos o que virá. E a consciência dessa urgência encontra nosso último ato, sustentado no que pode ter sido única diferença pela qual ainda vale a pena esperar.
O momento indeterminado ainda está presente. Constato que a mudança dos horizontes que nos afetam, na qual estamos imersos, assombra-nos. Algo está em jogo: o que detalhamos por trás de nossas insólitas decisões. Rasgamos a qualidade de nossa incompetência pois as regras desse mesmo jogo mudam constantemente. Talvez haja sentido. Mas não quero o sentido, quero ainda que errante, apenas o sentir.
Nossas emoções, traduzidas em todo sentimento realizado, esculpido e mesmo abandonado, rumam para nossa poética história de desejos.
E ao abrir nossa melhor representação, nosso fluxo redundante de facilidades, selecionamos a melhor e mais atraente de nossas problemáticas.
Então, como criadores de nossa própria arte viva de sentir, cumpra-se nosso apelo mais heróico, avançar sentindo.
Se formos recentes nas palavras, envelhecemos nosso mosaico de pensamentos, limite infindável de todo o sentimento.
O pensar, seguido do sentir é ainda aquilo que nos causa a mais incômoda situação, a que permanece fora de nós, mesmo que o pensamento seja parte de nós.
Assim, compartilhamos nossos ‘eus’ sem saber que estamos prescritos nas palavras que simulamos verdadeiras.
Prefiro não calar, posto que desapareço. Mas gritar daquilo que se dilui e permanece por necessidade invisível
Os dias que me encontram, antecedem os que iria eu de toda forma, esquivar-me.
Penso em um registro evidentemente inviável dessas linhas. Imagino conhecer a situação, e retorno à origem do que me favorece. O nó que me prende.
Vejo então a presença mesmo física das partes menos próximas do que sou.
E se a abordagem de minha causa é individual, acabo me confrontando com a estrutura que mais me dá sentido. Aquela mesma indireta percepção de ser, continuar, permanecer.
Revisito minhas ações no tempo, as vertentes de minha lógica, e findo falando incansavelmente da realidade.
Mas a sensação é de que a realidade segue nada dizendo das entrelinhas que deixo de escrever.
Então, sigo outro tempo. Bebo um tempo outro. Sigo bebendo o outro.
Minhas fronteiras se formam em uma só questão: somos finitos?
Se sim, que se finde todos os limites, sem os quais a finitude não terá motivo de existir.
Quando habito uma posição sugerida pelo outro, nossa história está a serviço de nossas intenções instantâneas.
Estamos à deriva de nossos sentidos. Aquilo que permitimos em nosso lugar mais transparente, deixa-nos turvos em algum momento. Ditamos a ilusão comedida do que procuramos em vão perceber.
Em lugar de existir em crise, contradigo o que me permito pensar.
Ocupo-me então na tarefa de meus interesses contraditórios, sinto-os frágeis, assim como os entendo ser.
Pois originais são meus vínculos mais absolutos. Aquilo que mesmo mudo, deixa-se dizer.
O acordo, a partilha, as frases que cuidadas, são ainda minha sensibilidade preferida. Aquelas porém, inconfundíveis, tocantes e tocadas, mansas e amadas, latentes e mais ou menos arriscadas.
Evidentemente, há um confronto fiel em mim do qual confesso ainda desconhecer a ordem, mas do qual, contudo, permito-me entender.
Nosso instinto é a força narrada ao infinito e que nos guia a acontecimentos sem forma, sem cor, sem eixo. Uma abstração efêmera de incertezas vivas, cotidianas, cheia de ferramentas reais transitadas em nosso mundo e em nossos lugares mais ou menos impossíveis.
A experiência do que vou mostrar passa pela imagem do que começa em apenas possibilidades.
Cedo ou tarde, meus autores se vão em seus próprios relatos. Meu tema principal é uma desordem especular.
Estou em meus personagens mais individuais, ou no que eles estão fazendo de mim.
Nesse momento, rego a simples medida do que o outro percebe em mim.
Projetar sonhos ainda é viável. Porque o que busco tem nome, o que sinto é não saber projetá-lo para fora de mim.
...feitos pequenos, feitos amenos, feitos distantes, feitos errantes, feitos únicos e intolerantes. Ainda posso ver nossos feitos.
Falava para todo o silêncio que a tocava, para todos os caminhos que tentava seguir, aos que nela perdiam forças, aos que nela ganhavam. Não era a única a dar o tom de suas façanhas. Dizia como podia amar, e neste amor atender às longas resistências que se atravessavam em suas próprias falas. Permitia a ela, e por ela, que deixasse seguir. No fundo chegara, mesmo que atrasada, na escuta paciente de suas tão faladas e questionáveis queixas.
Somos um contratempo, uma causa impossível;
deixamos de ser aquilo que somos para sermos aquilo que nos acompanha na tentativa de ser.
Permitimos pelo resto do dia ser a metade de um inteiro. Pensara, contudo, viver num campo fértil para desejos inférteis e descobrira que vivia exatamente do inverso. Vivia em pergunta ao amor, e nem de longe em sua resposta. Como se suportasse os fetiches de nossos defeitos mesmo que isso de nada adiantasse. Pois sendo metade desta metade, ainda assim, serviria por inteiro.
Sim, há amor. Há neste caminho, há neste cantinho, há onde é decidido continuamente o que não deva ser seguido. Dentro de sua voz úmida, via apenas o momento da nova etapa, aquilo a que se destina sem destino. Era feito garganta, feito hora, feito cheiro. Uma estabilidade cretina, cheia de incertezas que só me permitiam continuar, notadamente, em estado de síntese.
Te amo.
Em meus versos, o mais importante primeiro.
O resto, de verso, é resto.
O amor primeiro.
Você primeiro.
Nós, para sempre.
Pensara naquelas pegadas esquecendo, contudo, quão intenso os ventos haviam soprado. Não queria encontrá-las, tais qual fixara um dia, bem como não pretendia calar-me frente ao árido e destoante asfalto construído acima da areia leve dos risos de outrora. Segredo desnecessário era sentir-me perto do mar, ainda que, em silêncio, longe da costa.
Dando-lhe uma passagem segura, em algum momento da minha vida, nosso conserto estava quase pronto. Eram etapas difíceis, nada fáceis. Ainda, uma pequena coisa estava para acontecer. Havia sempre algum problema. Era necessário muito esforço. Era engraçado. Eu falava sozinha, gritando numa cabine, à prova de mim mesmo. E soube por último que o primeiro obstáculo era não falar sua língua. Mas demorei a perceber. Não nos entendíamos, senão talvez em nossas danças de pupilas. E ainda era engraçado. Eram passos a meu ver, inusitados. O segundo era que havia algo incompreendido além de todas as conversas. Como eu poderia adivinhar? Pensei em dizer-lhe, era tão óbvio que depois de tudo, ainda havia o nada. Nosso nada, supostamente nosso, isolado e de ninguém. Mas o fundamental nunca seria dito. E então desisti. Poderia apenas querer, além do que meus olhos já determinavam desejar. Era o prazer de encontrar, em cada detalhe, a satisfação de um sentimento correspondido; satisfação, ela e nada além.
Se eu não pudesse falar, tentaria te dizer
Com tudo o que me ocorre, buscaria reverter
As palavras passariam no leve som ao meu redor
Meu dito, meu querer, meu silêncio, limpo e só
Aquilo que me toca e prende, sem revolta
Pelo sim e pelo não
Pelo que talvez aparente acontecer
Pelo que sinto não ser em vão
Pelo meu desabafo, contente
Pelo olhar, direto, disfarçado e atraente
Cheio de decisões, inquieto e sem certezas
Quem quer se despedir
Dessa força, dessa beleza?
Disfarçando a fantasia, do olhar e da alegria
Ofereço o que não vejo
Minha verdade a luz do dia
Minha mentira verdadeira, no respiro indiscreto
Minha voz e meu pecado, minha sorte, meu excesso
No meu sonho tão distante e no meu choro destoante
Sinto toda uma força, consistente em que se lê leve, livre, solta
Certeza maior não há além do que a vida me ensinou
Fora de nós, amar
Dentro de mim, amor