Eliurias
Bem vinda seja a tragédia grega da divisão divina, que nos obriga a buscar pelos pedaços separados de nossos corpos e almas, que nos faz sentir incompletos e vazios, que nos impulsiona a levantar em dias tortuosos e buscar em outras almas o que repare as nossas próprias, dando assim um sentido a cada pegada que deixamos marcada nesta terra durante todo o tempo de vida humano.
Assim como trágica, esta divisão muito bem feita tem suas boas faces, pois assim eu posso sentir a satisfação de te encontrar, a sensação de formigar e por um momento uma felicidade tão grande que seria capaz de te fazer voar, e assim eu conheceria o motivo daquela coisa toda de jovens apaixonados ser tão famosa, as "borboletas na barriga", finalmente fariam sentido.
Eu poderia finalmente me sentir completo, eu poderia me completar contigo e te completar comigo, a simplicidade de passar tempo juntos e fazer planos pro futuro, discutir gostos e rir de coisas bestas, curar as feridas uns dos outros, para que quando a terra volte a girar e nos separemos novamente, eu possa me gabar a todos os deuses e homens de que fui sortudo de viver tamanha felicidade e satisfação porque te encontrei.
Vida desenhou os seres marinhos baseados em seus pesadelos, para que sempre que mergulhasse pudesse lutar contra seus medos em pé de igualdade, mesmo que seu maior pesadelo nunca tivesse realmente lhe desafiado em um duelo.
Morte nunca desafiou Vida, e Vida permaneceu com medo.
Caímos desamparados e incapazes de nos mover, nossas asas decepadas e altares destruídos, vertendo sangue quente, sendo acolhidos pela imensidão fria. Nos deixamos ser engolidos pelo remorso e culpa, regados pelo desprezo nos olhos daqueles que permaneceram sob as nuvens.
Mentindo para nós mesmos pois não queríamos aceitar a culpa dos pecados que cometemos e cegando nossos corações culpando os outros por coisas que fizemos por conta própria. Divididos entre fazer o que nos foi pedido e o que achamos correto, fomos condenados a afundar no abismo, assim a escuridão me engoliu, e aquele que mais me culpou fui eu.
Imundície.
Corpo sujo; o sujeito sente-se coberto de sujeira da cabeça aos pés, tal sujeira incapaz de se livrar, que nenhuma palha lava e nenhuma roupa cobre, imunda ao ponto de contaminar o caminho por onde passa, todos as pegadas que deixa e todos os lugares onde se porta, odor infértil impossível de suportar, o qual nenhum perfume poderia camuflar, comparando a si mesmo com aterros sanitários e covas coletivas, o sujeito sente-se imundo.
Mente suja; o sujeito não pode evitar ouvir as vozes lhe culpando em seus próprios pensamentos dentro de uma cacofonia organizada pelos seus medos e traumas, lhe culpam por estar coberto de sujeira tanto por dentro quanto por fora, lhe culpam por cometer erros e não ser útil, lhe culpam por não conseguir assumir a liderança, lhe culpam por não conseguir conversar e esclarecer os pensamentos, lhe culpam por comer e beber, lhe culpam por vestir e calçar, lhe culpam por respirar e viver, e acima de tudo lhe culpam por existir. O sujeito sente-se inútil.
Alma suja; O sujeito não sente. A alma é o núcleo, e o núcleo foi sufocado até se extinguir. O sujeito deixou de sentir, porque o corpo e a mente passaram a duelar um contra o outro e desistiram de lutar para defender o núcleo, que ficou exposto e foi dado como principal culpado, deixado à própria sorte e terminando dilacerado e sem concerto, está morto. O sujeito se sente vazio.
Tudo que você precisa são 20 segundos de coragem.
Eu sou aquele que esteve cuidando, cuidando de suas almas, reparando suas feridas e ouvindo seu choro, estive ouvindo seus gritos. Porém não sinto pena dos humanos, não sinto empatia ou comoção por eles, entendo seus sentimentos e o valor dos itens que acumulam durante suas vidas, e o valor que pregam às pessoas que mantém perto.
Há uma rachadura que em toda a minha existência e em todos os milênios que vivo cuidando me intriga, me interessa bastante.
Vinte segundos, não mais que isso
Um pico de coragem insana aplicado á mente humana pode criar rachaduras incuráveis no destino, das coisas mais simples até pecados imperdoáveis. O que leva um humano a esquecer toda uma jornada vivida por nada menos que vinte segundos de insanidade? E veja só, o que eles podem fazer é impensável.
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"Será capaz de encontrar-te em 20 segundos, ser humano? Tu que trata a ti mesmo com desgosto em pronomes ruidosos tão escassos de real comparação seria capaz?"
O humano baixa a vista. Não há esperança em seus olhos, não há espectativa. Ele procura atento nos nós de seus dedos calejados o sentido, mas não é como se eles fossem lhe fornecer alguma resposta, eles estão cansados e doloridos, assim como cada célula em seu corpo. Ele solta o ar em um suspiro cansado "Eu não sei, só imaginei que poderia ser suficiente. Afinal… não há nada que eu precise dizer, as pessoas me conhecem, sabem o que eu diria, e não há nada que eu queira fazer, pois não vejo esperança ou sentido, não vejo mais necessidade alguma de me mover."
"Então o que fará? Eu terei que lhe observar gastar mais de mim por mais vinte segundos? Eu te observarei se manter de pé e olhar o nada outra vez? Se não há nada a se fazer, não há sentido em deixá-lo por mais alguns míseros vinte segundos!"
O humano ri.
Do que está rindo?
"Qual a graça?"
O humano parece ter receio de responder, porém se ergue com petulância e um brilho antes inexistente queimando em seu olhar "Você." - ele aponta - "ficou bravo porque não vê sentido, como uma criança que ficou cheia de ter que repetir a mesma atividade"
A voz dele era firme, ele sabia que não haveriam consequências em barganhar como tempo
O tempo, sem motivos para negar os benditos vinte segundos ao humano ou continuar uma conversa sem sentido com um ser pequeno como um verme, lhe concede com desgosto. Com um leve sinal de dedos, o humano é levado de volta á terra, não antes de ouvir o tempo perguntar:
"O que é que você está indo realmente procurar em vinte segundos, garoto?"
Rindo outra vez, leve e calmo como nunca antes, responde:
"Eu encontrarei a paz."
Não poderia negar, vinte segundos. Há coisas que o tempo nunca entenderá.
Como uma ironia do destino, ou talvez algum karma tardio lhe atingindo com a força de um caminhão de carga em alta velocidade, o bloqueio me foi uma faca de dois gumes. Uma defesa mental que eu mesmo criei, paredes endurecidas construídas com lágrimas para manter a dor longe, uma dor que me privei de sentir acabou acumulada, arranhando as paredes do meu ser como um animal raivoso, me deixando em carne viva e me machucando por dentro, se tornando maior a cada dia.
Eu fui covarde, pessoas tendem a ser covardes ao assumir suas fraquezas, e eu fui um covarde patético que preferiu tentar fugir de outras formas por muito tempo, evitando sentir.
Com os anos, o "evitar sentir" se tornou "não poder sentir", pois cada reflexo de sentimento passa a ser engolido e trancado, o medo consumindo cada gama desconhecida de si mesmo que possa um dia se tornar emoção, sendo condenado a estar vivo, porém não ser mais capaz de viver, já não é capaz de olhar as pessoas e realmente enxergá-las, não é capaz de sentir um toque que não seja algo que machuque, a comida que tanto gostava não agrada e não tem gosto, o cheiro nostálgico de terra molhada já não te conforta, e nem o céu que tanto amava, o céu aos teus olhos não brilha.
Então te torna incapaz de viver, não vê futuro porque não pode se desfazer do passado, não pode se desfazer do pânico que sentiu enquanto fugia, nem a dor aguda de quando as pedras te atingiram, nem das lágrimas e o desamparo que sentiu, toda a sua existência esperando por uma oportunidade de terminar a si mesmo, não está vivo, não está morto, sente e não sente, está em agonia.