Eduardo Galeano in "O livro dos abraços"
Estava suave o sol, o ar limpo e o céu sem nuvens. Afundado na areia, um caldeirão de barro fumegava. No caminho entre o mar e a boca, os camarões passavam pelas mãos de Zé Fernando, mestre de cerimônias, que os banhava em água-benta de sal e cebolas e alho.
Havia bom vinho. Sentados em roda, amigos compartilhávamos o vinho e os camarões e o mar que se abria, livre e luminoso, aos nossos pés.
Enquanto acontecia, essa alegria estava já sendo recordada pela memória e sonhada pelo sonho. Ela não terminaria nunca, e nos tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba.
O crime perfeito
Em Londres, é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer funcionar a calefação de seu quarto.
Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.
O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.
Imediatamente, puseram mãos a obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.
As moedas de gelo não deixavam pistas, porque o calor as evaporava.
E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar Caribe.
p. 181
E também nós tínhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa entristecida, aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada.
(A casa, p. 194)
E disse que dali para a frente era conosco, porque a sorte não ajuda quem não a ajuda a ajudar.
(O exorcismo, p. 196)
Os sonhos do fim do exílio/3
As lentes dos óculos tinham se quebrado, e as chaves tinham se perdido. Ela buscava as chaves pela cidade inteira, às cegas, de joelhos, e quando finalmente as encontrava, as chaves diziam que não serviriam para abrir suas portas.
p. 200
As impressões digitais
Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
— Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.
p. 267
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.
(O ar e o vento, p. 269)
A ventania
Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.
p. 270