Eduardo B. Penteado

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UMA FOTO, UM BILHETE, UMA FLOR
Eduardo B. Penteado



E depois de tudo
Só deixaste uma foto
Um bilhete uma flor
Me vejo menino na foto sem cor
Te vejo sonhando ao lado da flor
Amor?


Fugiste do adeus dos olhos ateus
Que fantasiavam os teus olhos
Como sendo os meus
Me vejo sozinho, menino incolor
Te vejo me olhando, de dentro da flor
O menino chora na fronteira do mundo
E o cinza se torna vermelho profundo
Planta a flor na areia, então
Terei a ti sempre ao alcance da mão
Sempre, sempre ilusão.

RELENTO
Eduardo B. Penteado


Voltei à tal da praça molhada
Onde antes eu vinha chorar
Mais uma vez, só mais esta vez...
A praça está úmida e o hoje é seco
O beijo é soco, o amor é relento
E todo o resto vai ficando assim
Em Santa Teresa, em meu pensamento
Em minha caneta e em torno de mim

Não adianta entender o que houve
Pois tudo o que foi foram nadas
Um livro impresso em tinta branca
Um almanaque de fotos veladas
Um almanaque e meio
Lábios... longe... seio.
A lágrima que teima em não cair
O bonde com medo de se molhar
A palavra difícil de sair
O silêncio, o ruído, o olhar.

Um vento noturno diz a que veio.
O velho lustre balança, será?
Um velho ilustre a se embriagar
O ilustre balança e vai desabar
Assim como o céu, a chuva e o mar
E eu me pergunto, pensando, a sorrir
“De onde vir? Para onde partir?”
“Não sei,” disse minha alma pequena
“Nem sei o que trouxe você aqui.”
Digo adeus ao velho, ao lustre e ao bar
Fecho os olhos
E deixo o vento me dispersar.

TRILHOS
Eduardo B. Penteado


Olhos, olhos e tudo o mais
Vi teus olhos hoje na praça
Correndo soltos nos olhos do velho
Fitando os olhos do menino franzino
Iluminando as luminárias das Neves

E foi somente nesta praça
Flutuando num outro tempo
Fustigada por outros ventos
Que a chuva alagou os trilhos do ontem
E como nos filmes antigos
Tudo ficou mudo e foi-se a cor
Tudo pode, nas histórias de amor...

A chuva encheu o ar com o cheiro de teu suor
Num rompante, sem conter tal ardor
Peguei minha saudade pela mão
E dancei na praça uma valsa
Um rock, um baião
Refrescando na chuva torrencial
Os sintomas da minha paixão

E dançando uma coreografia de raios
Canalizei o que havia fantasiado
Para um ponto inerte do meu passado
Até achar-me num nicho imaginário
Um segundo além do presente
Sempre um segundo distante
Mas vi-te passar tantas vezes de carro!
Com tantas pessoas conversaste!

Um segundo após o raio
Tudo era de novo uma grande ausência
Como a chuva caindo nos trilhos do bonde
Que hoje não quis se molhar.

BLISS THIS
Eduardo B. Penteado


Stay away from my old swamp
It´s cold and dark and damp
Oh, yes, I guess I love the mess
That hides beneath my false distress
No trees, no breeze, no lust, no leaves
My madness coupled with disease
All your screams are muffled dreams
And all your hope lies with the fiend
Everything that you most fear
Is waiting for your face in here
Hold me, hold me, metal tonsils
Abort me, blind eyes of justice
I have thrived, thus I have failed
Thou art but my truth unveiled
I couldn´t bear the birth of dawn
Hence cometh the weight of night upon
Bliss, bliss, remember this
I might be slain by a word amiss
Bliss, bliss, art not remiss
I might be saved with a simple kiss.

PERFORMANCE
Eduardo B. Penteado



Bebia o velho poeta num canto de bar
Sozinho, esperando um metafórico apagar de luzes
Melancólico
Equilibrista
De lados opostos de seu bastão de cristal
Um cigarro seca o copo
Um gole apaga a chama
"Estou livre do verso, estou livre da trama!"
Jovens sóbrios caçoam do velho
O garçom ébrio reclama
Então, à meia-noite,
Voa longe a tampa do tempo
No canto escuro do barzinho sisudo
Nasce um personagem absurdo
"Sou o bêbado, sou o vagabundo,
sou o maior equilibrista do mundo!"
"Silêncio," bradou uma voz lá do fundo
E o poeta, moleque, fez-se de surdo,
"Sou seu beatnik, sou seu punk, sou o que há de mais imundo!"
Calou-se a platéia de incrédulos debutantes


Um garçom sóbrio, inexplicável
No qual ninguém havia reparado
Trouxe um candelabro de ossos
Uma a uma, as lâmpadas se apagaram
E se pôs a funcionar o gramofone quebrado


O futuro passou com escândalo
Silenciosamente, fez-se presente
E fugiu pelo espelho da contradição,
Deixando o poeta no meio do salão:


"Sim, vivi a vida, talvez
Como poucos coçaram a ferida
Como poucos comeram-na viva
Não sei, é claro
O que virá em seguida
Um sol hepático
Uma lua enfisemática
Uma aurora boreal sifilítica


Mais um dia
Homem, sorria!

Nunca olhei horizontes
Pois cada curva me dispersa
Eu olhava o que eu seria
E via o que eu não queria
O tempo passa, e a vida, devassa,
Escancara aos abutres a minha carcaça


A fonte da vida!
A chama da vida!
A fonte apaga a chama
Que a água vaporiza...


Venham, abutres!"
E todos nós fomos.

O PRECIPÍCIO EMBUTIDO
Eduardo B. Penteado



Muito pouco foi dito
À beira do precipício
Nenhum gesto, nenhuma farsa
Nenhum sentido embutido
Apenas um passo em falso
Rumo ao baque inevitável
Lá no fundo da ravina

É como a queda de um cofre
Que se faz em mil pedaços
Explode e espalha seus segredos
Pelas águas de um riacho
Que sobe o morro até a nascente
Finalmente

Muito pouco foi dito
À beira de um momento propício
Nenhum gesto, nenhuma lágrima
Nenhum sentimento explícito
Apenas um grito.

FUGA
Eduardo B. Penteado



Estou em fuga de um lugar para outro
Mas creio serem o mesmo
Creio não ser eu mesmo
Mas jamais serei o mesmo
Mesmo porque, isso nunca fui
Mesmo assim, busco uma saída
Para o lugar de onde todos fogem
Não me acho certo nem errado
Pois assim saberia onde estou
Saberia até quem sou
O que, em si, já seria lamentável
Assim perderia a liberdade
De ser aquilo que eu quiser.

CLAUSTRO
Eduardo B. Penteado


Cada detalhe
Fragmento de lembrança
Bombeia o passado em minhas veias
E ele volta
Com um estrondo milenar
Preenchendo os espaços do meu claustro
Ecoando pelos cantos
Rachando as paredes
E formando túneis
Túneis que fatalmente me levam
A lembranças cada vez mais remotas

Tornei-me estático
Cheguei a lugar nenhum, outra vez
Nas ruínas de onde tudo começou
Coloquei o passado na estante
Mas ela desabou
E tudo se espalhou por onde agora piso
Vozes, nomes, datas, rosto
Vozes, nomes, datas, corpo
Restos.

Cansei de fingir que vivo no presente
A saudade morde a carne dura
E tira pedaços de vida crua
Bebe o vinho e só deixa o pão
A água
E o silêncio.

CAPTURA
Eduardo B. Penteado



Quisera eu regressar no tempo
Até o instante de tua partida
Prender-te em meus braços
Com laços de aço
Cercar-te de mim pelo resto da vida
Tentar impedir tua fuga insegura
Quisera ter feito tamanha captura
Mas minha vida está cheia de rosas
Brancas, vermelhas ou mudas
A perda me envolve com a dor da ruptura
O solo que morre, o Sol que se afasta
As flores queimadas, é o fim da procura
A mão que me afaga me aperta a garganta
E o riso sintético esconde a loucura.

CERTEZA
Eduardo B. Penteado



Já queimei todas as máscaras
E agora só resta eu
Finalmente aprendi a ser um ser confuso
Aprendi a me perder e a procurar
A minha própria solidão
Sou um ser dependente de uma seta
Para um futuro que caminha a passos largos
E se afasta
Por uma estrada que eu já trilhei
Eu tinha certeza!
Eu tinha certeza...
E hoje em dia a certeza não me diz mais nada.

LOUCURA LÚCIDA
Eduardo B. Penteado



Mais uma vez me escondo
E portas se fecham atrás de mim
Abro os portões do meu mundo
Como uma criança que invade um jardim
E só por ser diferente
Por não mostrar que estou contente
Eu apodreço aqui
Mas disso não me acusarão
De louco, não


E a sensação de abandono vem
E te faz refletir
Mais um louco se mata aos poucos
Sem o mundo sentir
E cada louco que morre
Leva junto uma história
Triste, curta e singela
De alguém que não soube fingir
Me acusarão
De louco, então.

FILOSOFIA
Eduardo B. Penteado


Layla chorava no canto do quarto
Lendo aquele livro do famoso filósofo
Upside Down
No outro canto, no berço
Seu filho ria
Daniel, pequenino, nada entendia
Layla chorava no canto do quarto
E cada página que rasgava, doía
Seu conto de fadas acabara
Sua redoma de cristal explodira
Daniel, do berço, ainda ria
E Ivo, na biblioteca, lia tratados de Antropologia
Ele sabia
Layla pensava na carne e na volúpia que sentia
E a cada página que rasgava, tremia
Daniel ria
Daniel também sabia
Ivo lia violentamente na biblioteca escura
E do canto do seu olho uma lágrima corria
Ao lado do livro, uma arma reluzia
Ivo lia desesperadamente na biblioteca vazia
E Daniel, pequenino, tudo entendia
No canto do quarto, Layla já não chorava
Coberta de conceitos de Filosofia
Em sua mão sangrenta, o brilho de uma lâmina
Fria.
Daniel dormia
Esperando o amanhecer de uma casa vazia
E sonhando em viver, ele também
A paixão que ainda não conhecia.

HONTEM
Eduardo B. Penteado


Sinto-me oco
Então bebo da água de hontem
Ela tem gosto de ossos secos
E resquícios de outros gostos
A água de hontem tem gosto de corpos
Frios corpos funestos
A água de hontem sai de corpos mortos
Corpo, rosto, objeto
Encho o meu copo e acabo com o fastio
Encho o meu corpo de um espaço vazio
Sinto-me louco
Então inundo-me da água de hontem
Ela tem gosto de vermes secos
E resquícios de outras mortes
A água de hontem emana dos cortes
Na pele de corpos inertes
Dermes
De onde exala o odor mutilado
Enoja-me a visão de meu corpo jugulado
Sinto-me pouco
Então afogo-me na água de hontem
Ela tem gosto de todos os meus medos
E resquícios de velhos horrores
Ela encerra espectros e esqueletos
E ressuscita minhas dores
Neutraliza minhas cores
A água de hontem secou as minhas flores.

PREMATURE (THE KILLING ACT)
Eduardo B. Penteado



Days go by, and here am I
Painting pictures in the sky
Wasting time to picture you
Is all that I have left to do
The irony is so uncompromising

Then I came to recognize
Someone yelling deep inside
How could I believe in lies
How could I believe my eyes
It's the little child in me who dies

As I fumble for the gun
There ain't nowhere left to run
The crowds roll in, the lights go out
The killing act's about to start
In the dark the child is scared, and cries

Life and death are suicide
I tried to run, I tried to hide
How could I believe in lies
How could I believe my eyes
It's the little child in me who dies.

ENSEADA
Eduardo B. Penteado



Adverti-me
que inadvertidamente
brotariam-me os versos de sempre
prostrei-me, porém
e descobri que meu eu silente
clamava pelo teu, ausente
escancarei-me ao acaso
e aguardei a chegada de rima, verso
ou algo equivalente
fitando a enseada
contei cada barco, cada vela e cada onda
fitando as janelas
olhei cada gesto, cada rosto e cada sombra
as luzes se acendem na enseada
brotariam-me as mesmas luzes de sempre
mas assim, estranhamente
há no hoje um algo diferente
uma eterna ânsia enfim desvendada
uma sensação de peão em fim de estrada
uma imensa vontade de pular e dar risada
e tudo isso, entenda,
foi porque descobri que meu eu silente
clamava pelo teu, ausente
assim, inesperadamente
convidou o teu para um tango caliente
e como o Sol poente agora é história antiga
dá-me as mãos e um beijo saliente
enquanto bailamos, ruidosamantes
ao final desta estranha cantiga.

ABAT-JOUR
Eduardo B. Penteado

Consegui.
Consegui finalmente ser inacreditável!
A porcelana eu quebrei
A flor do campo
Esmaguei,
Sob um coturno imenso
Ha, ha, eu sei.
Aproveitei
E arrotei no meio do poema
Contei o final da piada engraçada
"Por que me olhas assim?
Com minha besta abati o albatroz."
Que engraçado...
Mas qual é a graça?!
É horrível eu já ter lido isso em algum lugar.
Há muito tempo,
Um albatroz era apenas um pássaro
Ainda não era um albatroz
Chega.
Já sei,
Já sabemos onde isso vai dar
Mas será que vai dar?
Você ainda está aí?
Talvez.
Talvez seja melhor calar-me
Escrever a noite toda ou mesmo
sair.
Embrenhar-me em velhos guetos
Tentar-me, divertir
Besuntar-me de tudo aquilo que resolvi execrar
Acordar ao lado de um cadáver
E distribuir minhas farpas ao amor personificado
Como a besta que abat...
...jour. Dia. Luz.
Sim, como eu queria ser um abat-jour!

Não, não é bem isso.
Não é nada disso!
Ainda não completei a transição
Ainda não escrevi a canção
Que todos hão de cantar...?
Ora, cale-se!
Alguém está pedindo para deixar a luz do sol
entrar.
E na TV muda
Alguém agora está morrendo
Não sabia que podia-se sangrar tanto,
em silêncio.
E na TV nada muda
Um filme que eu com certeza já vi
Mas hoje talvez ela esteja certa:
Talvez eu deva mesmo fazer uma pausa
Uma breve pausa desperta
Um breve basta, por que não?
Na obsoleta programação
Para poder dormir e acordar num novo dia...
Sempre!!
Eu sempre gostei delas
Mesmo quando a TV era preto-e-branco
Eu sempre gostei dessas barrinhas coloridas.
Hoje, nem tanto.

SAL EM BOCAS SECAS
Eduardo B. Penteado


Nunca quis tanto dizer o contrário a alguém
Sem poder e sem querendo
Nunca quis tanto dizer adeus a alguém
Simplesmente para continuar vivendo
Dizer adeus a alguém
Que um dia eu já disse ser sinônimo de vida...
E continuo dizendo?
Dizer adeus à vida
É uma piada de mau gosto
Que infelizmente não é de minha autoria
Fosse, eu a calaria.
O piadista covarde voltou-se contra meu riso
Tirou-me o doce, o palhaço vingativo
No entanto
Enquanto tratava-me como menino arteiro
Castigou-me como adulto infrator
Plantando uma semente de dor
No mais íntimo e piegas canteiro:
Uma dura semente de esperança
Que tomou-me o espaço inteiro.
A terra era ruim
Salgada de lágrimas
Mas a esperança, desgraçadamente,
nasceu.
Se alimenta de mim, aos nacos
E tudo ao redor, aos poucos,
morreu.
E nessa batalha absurda
Perderei enquanto houver esperança
Enquanto houver esperança?!
... nunca acharia as gaivotas cruéis, pensava eu.
Mas neste momento o céu está cinza
E posso ver várias procurando abrigo.
Devem estar indo para casa
Ou algo parecido.
Enfim,
Nunca quis tanto dizer adeus
Nunca tive tão pouco a dizer sobre Deus.

O PÁSSARO SÓ
Eduardo B. Penteado



"Voar não é morrer..."
Voar é não morrer
Na morte a alma voa
A pedra voa e o pássaro morre,
Se não voa
Voar não é morrer
Morrer é não voar
O pássaro Só não voa à toa
Só voando e só vivendo
Aprendendo e não morrendo.
Do outro lado do meu céu
Está o seu
Mas o céu não é seu, nem meu
E na morte voamos para o céu.
Mas realmente,
Se voar não é morrer
Voar é não morrer
Morrer é... voar?
Morrer é o pássaro voar
Pra nunca
mais voltar.

ILUSÃO
Eduardo B. Penteado



Angústia
Sentimento que aflora
À flor da pele
Não perdoa e me devora

Angústia sem motivo
Sem porquê nem por que não
Triste prazer masoquista
Triste forma de ilusão
Desilusão

Qualquer alegria é fogo de artifício
Uma dança de máscaras
Numa cerimônia de morte
Luto, véu e grinalda
Pai, filho e espírito
Pranto

Fecham-se as paredes em torno do canto.

O OLHO NA FECHADURA
Eduardo B. Penteado



É como esconder um poema
Rasga o verso
Rabisca a estrofe
Sufoca a rima
Escondo então a pena assassina
É como saber a hora da morte.

É como o arame farpado
Que cerca o horizonte
Corre livre pelos campos
Pelos rios, pelos montes
Corre livre, ó carcereiro
Faz de mim teu prisioneiro

Baixa então o nevoeiro
Me procuro, mas não me vejo
Fecha então a porta do teu desejo.

PASSOS
Eduardo B. Penteado


Sinto-me denso
Sinto-me absurdo
Tirem a mente de minhas mãos
Pois cada linha que escrevo
É um degrau a mais que desço
Rumo ao nada!

Do nada extraio nada
O nada trabalho com esmero
O nada moldo em desespero
Para obter o nada perfeito

Hesitação.

Passo a passo, sem corrimão
Enxergo nada na escuridão
Mas sinto o peso, e desço mais
Caminho tenso, sem olhar para trás
Não posso parar,
Senão me tiram a escada
Então cairei, mergulhando no nada.

COBERTAS
Eduardo B. Penteado



Onde estás, pergunto-me...
Em casa, sonhando com gozos de mel
Ou gozando sob o fardo bonito de um estranho
Sob as cobertas de um sujo... motel?

Só quis saber...
Não sei se te amo ou odeio,
Meu amado ex-amor
Não sei se revelo o meu tolo dilema
Ao impassível mundo exterior
Nem sei se passo em frente onde moras
E vivo o meu mais profundo temor
Teu beijo numa boca ao acaso
Tuas juras de tesão, seja a quem for
Queria, ao léu, encontrar tua substituta
Nem que fosse, talvez
Na mais barata prostituta
Devassa, sem limites e insaciá...
Não, isso seria improvável!
O que sinto por ti dá de dez no sexo
Rimando pobre, teria muito pouco nexo
Gozar em outro corpo, outra boca, outra alma
Que não fosse naquela louca calma
Que encontro nas profundezas de ti, meu amor.

RECATO
Eduardo B. Penteado



Tu, que estás sempre presente
A cada dia num rosto diferente
Anônima e perdida entre minhas lembranças
Memórias de um tempo de recato, distante
Em que todo o meu amor cabia numa estrofe
E todo o meu desejo, num olhar de relance
Olhar que despia teu tabu num segundo
E te vestia com toda a libido do mundo
Assim, sem mais nem menos
Como num longo estalar de dedos
Te fazia mulher
À sombra de minhas ilusões e medos

Sempre te amei assim, nas sombras
Como a platéia contempla a atriz
Como a alcatéia fantasia amores de camarim
Que gosto teria teu beijo num camarim?
Nunca ousaria dizer-te estas linhas trêmulas
Pensava eu
Mas agora é tarde demais
A língua bateu nos dentes
A represa se rompeu
Mas valeu
Acho eu
Adeus.

SALGUEIROS
Eduardo B. Penteado


Que cada lágrima derramada no silêncio da distância
Se molde nos arcos de nossa ponte de pedra
Que atravessa um riacho turvo de insegurança
E abstinência.
Nossa ponte não toca as margens, e nem poderia,
Pois nunca tivemos começo nem fim
...e nem o tempo.
Gosto de contemplar a areia fina da ampulheta
Minha mais falsa amiga e infiel companheira
E rio,
Dançando a valsa do adeus sobre o parapeito de limo
Eu rio!
Chovendo a areia da verdade sobre a ponte do destino.
E entre risos, orquestras e árias, o silêncio:
Os salgueiros nos observam das margens, chorando
E sonhando:
Que cada instante de saudade vivido
Se traduza no primeiro momento de um regresso partido
E definitivo.

DEUS-JÁ-VI
Eduardo B. Penteado


Foi numa praia em preto-e-branco
Numa noite expressionista
Sim, eu quase me lembro bem
Foi na época do meu primeiro monólogo com
deus(?)
Eu gritava e ele não respondia
Apenas me olhava
E eu andava calçado na água salgada
Um grito me acordou
E vi-me num sonho redondo e simétrico
"Socorro," gritou o que fui
De leve esbarrando no que sou
Torci para não ser reconhecido
Mas na multidão de eus,
Fui eu o escolhido
Cortei-me fundo, procurando uma veia
Mas só achei um veio de mercúrio
E eu estava longe, muito longe
Longe demais para gritar:
Morte, riso, planta, mulher
deus seja aquilo que eu o quiser!