Desidério Murcho
Uma vez mais, estamos perante uma espécie de prostituição semântica, que neste caso tem até nomes muito precisos: relativismo e multiculturalismo. Estas ideologias pretendem fazer-se passar por posições de tolerância relativamente a culturas e práticas e crenças diferentes das nossas; na verdade, no entanto, escondem uma incapacidade radical de compreender e praticar a tolerância. [...] A resposta é que não se trata verdadeiramente de tolerância, dado que eu começo por admitir que não há verdades neste domínio; logo, os outros nunca estão errados. [...] O relativismo e o multiculturalismo são sucedâneos da verdadeira tolerância quando não se tem a capacidade mental para ser verdadeiramente tolerante. A tolerância é tolerar o que consideramos errado.
“Uma concepção subjetivista de felicidade considera que na felicidade só conta o que uma pessoa sente interiormente, sendo irrelevante a origem do que a faz sentir-se feliz. Isto é implausível porque, se fosse verdadeira, significaria que seria para nós irrelevante se a fonte da nossa felicidade é a realidade ou uma fantasia.
A felicidade é um valor fundamental para todos nós, mas não se pode ser feliz visando a felicidade. Se é feliz cultivando atividades de valor e alargando a compreensão dos nossos talentos e limites. Se é feliz acrescentando valor ao mundo e apreciando o valor que encontramos no mundo.
Entregarmo-nos a atividades de valor é uma condição necessária para a nossa felicidade, e há muitas atividades de valor. A verdadeira dificuldade é evitar atribuir valor ao que não o tem e não dar suficiente valor ao que o tem.”
Do fato de não podermos, perante qualquer crença nossa, garantir que ela é verdadeira, não se conclui que a crença não é verdadeira. A verdade não é transparente. Uma crença é verdadeira ou falsa consoante a realidade for de uma ou outra maneira, e isto é independente de termos ou não maneiras mais ou menos automáticas ou garantidas de excluir a sua falsidade.
Sempre houve e sempre haverá doidos em todo o lado, incluindo nas universidades. Hume nunca foi admitido nas universidades, as ideias de Descartes foram proibidas, e ao mesmo tempo aposto que nas universidades desse tempo se fazia tolices atrás de tolices, de que hoje ninguém se lembra. [...] É tão desavisado espernear contra as fraudes intelectuais nas universidades como contra o frio de uma noite de Inverno.
O analfabetismo filosófico consiste em dar-se ares de profundidade filosófica, exatamente como os astrólogos e os numerólogos se dão ares de profundidade científica e matemática. Mas é só ares. Se fossem fazer uma prova qualquer de ciência ou de matemática bem feita, não só reprovariam como seriam incapazes, mesmo estudando, de ter nota máxima. O mesmo ocorre com o analfabetismo filosófico: pessoas obviamente sem capacidade para pensar julgam-se filósofas porque fazem uns trocadilhos que impressionam analfabetos.
Sempre houve e sempre haverá crendice e tolice humana. Tudo o que podemos fazer é dar a quem quiser não ser tolo a possibilidade de não o ser. Quem quiser continuar a sê-lo, tem esse direito. E tem o direito de o ensinar, publicar e divulgar.
"A verdade é o que ocorre quando as nossas convicções representam corretamente a realidade. Nunca temos maneira de garantir a correção da representação, mas nada se conclui daí exceto a nossa falibilidade. E o que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas é a realidade."
"'Pensamento crítico' e 'lógica informal' são designações dadas ao estudo dos vários aspectos que tornam um argumento ou raciocínio adequado ou não [...]. Todos raciocinamos e argumentamos diariamente, mas quase todos desconhecemos os princípios elementares que nos permitem fazê-lo melhor, e que nos ajudam a distinguir os raciocínios e argumentos adequados dos inadequados. É um pouco como se todos tivéssemos de fazer cálculos aritméticos simples diariamente — como certamente temos de fazer, pelo menos para conferir o troco quando compramos algo — mas, apesar disso, quase todos desconhecêssemos os princípios elementares da aritmética.
"Um professor que não acredita na possibilidade da imparcialidade do ensino, ou pelo menos na imparcialidade do ensino como ideal regulador, é como um juiz que não acredita na justiça e defende que é só uma questão de quem tem mais poder conseguir obter o que quer à custa dos outros."
"Por isso, é necessário aprender a filosofar e não aprender uma ou outra filosofia - a preferida do professor ou dos autores dos programas do ensino secundário. E aprender a filosofar é aprender a discutir os problemas, as teorias e os argumentos apresentados pelos filósofos - e não aprender a repetir as ideias dos filósofos."
"[...] não há argumentos biológicos, físicos, matemáticos ou históricos contra a filosofia. Qualquer argumento contra a filosofia teria de ser filosófico. Portanto, para rejeitar a filosofia temos de filosofar. O que demonstra que a filosofia é inevitável. Argumentar contra a filosofia é como gritar 'Não estou gritando!'.
Não há maneiras não contraditórias de argumentar contra a filosofia porque a filosofia é o estudo cuidadoso das nossas ideias mais básicas. [...] É tão impossível viver sem ter ideias filosóficas como é impossível viver sem ter ideias físicas sobre o mundo à nossa volta. A opção é entre tê-las, estudando-as cuidadosamente, ou ter a ilusão de que não as temos, só porque não nos damos ao incômodo de as estudar."
"Um intelectual que seja incapaz de explicar de forma compreensível as suas ideias a uma pessoa com uma formação média, é um mau intelectual."
"Os seres humanos sentem-se felizes com valores mais sólidos — amizade, verdade, justiça. E quando lhes sai a lotaria ficam eufóricos durante um curto período, mas depois voltam ao que eram: se eram pessoas deprimidas, voltam a ficar deprimidas, se eram felizes, voltam à felicidade anterior. [...]
Nada é mais racional do que uma emoção apropriada, e nada mais irracional do que a falta dela: alguém que não fique horrorizado com o sofrimento alheio é adequadamente descrito como desumano. E a razão é também a faculdade mais emocional dos seres humanos: mal conduzida por emoções erradas, é possível produzir as piores ideias e argumentos [...] sem ver que são péssimas, só porque massajam as nossas emoções mais tontas. O ser humano equilibrado e feliz cultiva as emoções apropriadas, que respondem à razão, e trabalha para impedir que as piores emoções lhe toldem a razão."
A filosofia não é um corpo de conhecimentos que nos baste assimilar acriticamente, mas antes a atividade crítica de estudar ideias e argumentos minuciosamente, para ver se serão plausíveis ou não. Por isso, não se encontra nos melhores filósofos um conjunto de instruções esotéricas para dar sentido às nossas vidas. O que se encontra são estudos cuidadosos de diferentes ideias e argumentos sobre o problema. Isto não significa que não existam conclusões consensuais, entre os filósofos atuais, sobre o sentido da vida. Significa apenas que o trabalho filosófico é fundamentalmente a discussão minuciosa e paciente dessas conclusões e dos argumentos que as sustentam.
A teoria de Ptolomeu é logicamente coerente mas falsa; a coerência não é garantia da verdade. Mas é um fato que qualquer teoria verdadeira tem de ser coerente.
As sociedades democráticas atuais estão dominadas pelos meios de comunicação de massas, eleições que fazem lembrar concursos televisivos, multinacionais mais poderosas do que Estados, e uma irracionalidade notória na gestão da riqueza e dos recursos naturais. [...] Este é um mundo regido pelo consumismo frívolo, pela mentira da publicidade e da política populista, pela destruição dos recursos naturais, pela comunicação desviante que faz uma multidão gritar num bar sem realmente conversar nem estabelecer relações sociais sólidas. [...] A ideia de que podemos continuar a viver indefinidamente tal como vivemos hoje é um puro disparate; se todas as pessoas do mundo consumissem a energia que as pessoas dos países desenvolvidos consomem, o planeta não resistiria durante muito tempo. Não se trata de saber se queremos ou não encontrar alternativas para o modelo de sociedade em que hoje vivemos; nós teremos de o fazer.
Fosse a física exatamente o que é, ou a astronomia, ou a matemática, mas sem aplicações práticas que dão dinheiro e conforto, e ninguém aceitaria a autoridade dos cientistas. É a autoridade dos cientistas que faz a generalidade das pessoas aceitar ideias quase ininteligíveis de tão complexas — sobre átomos, o Big Bang, a dinâmica de fluidos, números imaginários, etc. Mas a autoridade dos cientistas só foi conquistada por via do dinheiro e da aplicação prática, e não pela razoabilidade das teorias. [...]
As teorias filosóficas têm menor grau de aceitação popular do que as científicas não por qualquer defeito epistêmico que tenham, mas por falta de poder social. Mas em ambos os casos se começa com o banal e se acaba com o contra-intuitivo e o inverosímil e o difícil de compreender.
Acho curioso que as pessoas se preocupem imenso com o poder político acrescido que a riqueza imensa dá às pessoas, e não vejam que esse poder acrescido não existiria se os políticos que essas mesmas pessoas elegeram fossem honestos.
Além disso é também curiosa essa preocupação com o poder político acrescido dos mais ricos, ao mesmo tempo que não se mostra qualquer preocupação com o poder político imenso dos jornalistas, que fazem o mundo inteiro andar a falar do que eles querem e que muitas vezes é o menos relevante.
Também é curiosa a ausência de preocupação com o poder político acrescido que qualquer grupo de ativistas bem organizado tem, aparecendo em todos os noticiários e fazendo mudar as leis que querem, muitas vezes contra a vontade da maioria da população, que não votou nessa direção.
O que realmente me preocupa é que a política é hoje um espetáculo idiota e irracional como o futebol em que cada qual puxa pela sua causa, muitas vezes ao arrepio dos seus próprios melhores interesses e seguramente ao arrepio dos interesses de uma sociedade mais justa, realmente justa, e não apenas que responde na hora aos impulsos do momento da palavra de ordem do dia.
Um dos aspectos curiosos da irracionalidade política é que seja o que for que se diga isso é automaticamente interpretado como algo que emana de uma dada posição política, e consequentemente reage-se contra essa posição, ignorando o que efetivamente foi dito.
Este gênero de irracionalidade não permite qualquer tentativa adequada para melhorar as coisas, porque depois de se começar a atacar a posição genérica que se sonhou que a pessoa tem, deixa-se de estudar e discutir o que seria importante fazer para se conseguir um mundo melhor.
Ao contrário do que pensam as pessoas que me atacam porque não faço o discurso de esquerda superficial idiota e tribal a que estão habituadas, não tenho qualquer simpatia pela direita mas antes uma preocupação genuína com a situação alarmante atual. E em vez de estar o tempo todo só a ler notícias quase todas semifalsas dos jornalistas, leio livros e artigos.
"...outra coisa que me incomoda profundamente: aparentemente, é proibido ser de direita. Eu não sou de direita. Nem sou de esquerda. Mas parece-me absurdo não compreender que só temos uma maneira de viver melhor numa sociedade complexa e com muitos projetos de vida diferentes: aceitar a diferença de diferentes posições políticas e organizar as coisas para garantir a máxima justiça. Quem deseja matar ou silenciar ou destruir ou simplesmente incomodar alguém só porque não faz o discurso costumeiro da esquerda não está de modo algum a contribuir para que tenhamos uma sociedade melhor."
O raciocínio intenso caracteriza a ciência e a filosofia. Infelizmente, a escola mata ambas e transforma-as na repetição melancólica de superstições doxásticas.
"A chamada 'boa vida' [diferente da 'vida boa'] é uma vida dedicada a prazeres frívolos, incapaz de dar lugar a uma vida humana genuinamente feliz, compensadora e realizada."
A Filosofia não é religião, nem uma prática iniciática de vida; ao invés, é o lugar crítico da razão, como por vezes se diz. A Filosofia não é um corpo de conhecimentos que nos baste assimilar acriticamente, mas antes a atividade crítica de estudar ideias e argumentos minuciosamente, para ver se serão plausíveis ou não. [...] Significa apenas que o trabalho filosófico é fundamentalmente a discussão minuciosa e paciente dessas conclusões e dos argumentos que as sustentam.
Muitos pedagogos de bancada pensam que sem esforço, concentração e determinação se consegue aprender a ler e a escrever, aprender matemática e física, aprender história e sociologia, filosofia e pintura, música e nutrição. O irônico disto é que no caso do desporto já é óbvio para toda a gente que sem esforço, concentração e determinação nunca se sai da mediocridade ou, na melhor das hipóteses, da mediania. Não há ensino de excelência que despreze o esforço, a concentração e a determinação. Para aprender coisas pela rama enquanto se come bebe Coca-Cola e se responde a frivolidades no Facebook não precisamos da escola para nada; as inanidades da televisão e da Internet bastam.
Qualquer método pedagógico que incida quase exclusivamente na oralidade e nos meios áudio-visuais, concebendo a leitura e a escrita como meros apêndices algo acidentais e até um pouco incômodos, terá poucas probabilidades de ser bem-sucedido. É ao escrever, e ao ler atentamente, que se vai além de meras generalidades superficiais e se ganha competências reais em biologia, literatura, física, matemática, história ou filosofia.