Damnus Vobiscum
O que já teve sentido deve, necessariamente, deixar de ter. Não podemos sozinhos julgar se houve ou não evolução: importa é que houve movimento.
A serpente rasteja em direção ao mesmo horizonte para o qual a águia voa. Lá, ao rubro clarão do sol poente, ambas se encontram e se confundem.
A vida não é um bem. Nada que seja imposto por uma vontade alheia o é. O que a vida é são seqüências de dias que não pedimos, cuja soma ignoramos.
O que esperar dos seres humanos além da sua renitente, mesquinha, irreversível humanidade? O amor é uma fútil tentativa de negar quem somos.
Sinto falta dos verdadeiros pessimistas. Não dos que reclamam da própria circunstância, mas daqueles que reconhecem que pouco se importam com ela.
Quem se preocupa muito com o que as outras pessoas pensam sobre si alimenta um déficit com a personalidade. Adaptar-se cria uma espécie de ônus.
A moeda de troca do amor é uma tal de saudade.
Mas os pobres de espírito, como eu, não dispõem desse tipo de dinheiro.
E mesmo que dispuséssemos, não aproveitaríamos em nada. Seria como provar do caviar mais fino em pão dormido. O amor é para os espíritos altivos.
Mas pior que lidar com a própria incapacitação para o amor é ter de conviver com a dos outros.
A metástase da carne tem início na alma. O vírus do câncer é quântico. Morte no multiverso, todas as réplicas tombando como peças de dominó.
Morremos em série, a nível cósmico. Apagados, obliterados, dizimados. O não-ser da mais infinita impossibilidade, nada pleno, oco perfeito.
Morremos molecularmente. No osso do átomo. Na estagnação do elétron. Deus cai na latrina e o Demônio toca a descarga. Morremos. Morremos.
Morremos e enquanto agonizamos a morfina do entretenimento nos distrai do estertor uníssono de células presas aos coágulos pastosos que somos.
A cultura da maldade, da imbecilidade e do vazio. A cultura da ausência de cultura. Não contra-cultura, mas a própria antimatéria da cultura.
Todo conhecimento convergindo para um fétido buraco-negro, ralo que suga mentes e amalgama cérebros perdendo-se no fomento do agora crônico.
Mas que dor seria legítima sem espectadores? Um ator não representa por detrás das cortinas. Toda calúnia há de ser lançada ao devido rosto.
Para que soro corrosivo da encenação grotesca carcoma a vil máscara do público, revelando a fealdade explícita por trás da maquiagem humana.
Enfrentar uma realidade inferiorizante enaltece quem o faz. Aceita-la apenas o encolhe além de qualquer diminutivo.
A morte é a melhor das interrupções. Não só porque faz você parar com o que estava fazendo, mas porque te possibilita jamais ter de fazer aquilo de novo.
Não parece contraditório que a maioria dos objetivos sejam subjetivos? Isso porque a natureza enquanto tal não objetiva coisa alguma, sendo toda objetividade uma triste ilusão que nós, criaturas subjetivas, teimamos em manter.
Uma personalidade divina que depende da indignação de seus seguidores mortais para proteger sua reputação está mais do que morta: está decomposta.
Fazer o que é certo, em humanos casos, é não fazer nada. A dicotomia é o maior dos males, um cão de duas cabeças que nos lambe e lacera.
Então alguns governantes o são por merecimento? Não. O marketing é a versão moderna do milagre, e a voz do povo o balbucio de um deus desapropriado da vontade. Há que se ter muita boa fé pra acreditar, não apenas nos políticos, mas em qualquer outra coisa que algum ser humano haja tocado.
É comum ignorar-se a si mesmo, ser englobado, tentar fazer parte de algo ou alguém... enfraquecer-se, mantendo a firme, ilusória convicção de se haver fortalecido.
Jamais deixarei de me sentir doente, pela consciência de habitar um mundo enfermo. Apenas aqueles que se abstraem da moléstia do mundo podem cultivar uma aparência saudável: fazem parte da doença, sem contudo senti-la.