Cris Guerra
Caminho.
Por algum tempo, ela segurou a lanterna. Iluminava o caminho e o deixava seguro durante a viagem. De vez em quando ele sumia, como criança ao se distrair com algum barulho no meio da estrada. Depois a alcançava de novo - não se sabe se em busca dela ou da lanterna. Até que, num determinado momento, ele ficou para trás. Quando não ouviu mais sua voz, nem os seus passos, ela apontou a lanterna acesa para todas as direções. Procurou, gritou por ele. Nada. Sentou-se à beira da estrada e chorou. Desligou a lanterna e ouviu o silêncio gritando, as cores do escuro cegando seu pensamento. E adormeceu, exausta. Quando acordou, já era dia. A estrada parecia diferente. Talvez outra. E de que adiantava a lanterna se ela não sabia mais para onde seguir? Ela ainda pensava sobre isso quando o avistou de novo. Sentiu seu coração batendo mudo. Não tinha o que dizer, nem para onde apontar. É outra a estrada. E ela já não sabe mais como guiá-lo. Ela mesma precisa aprender o caminho de novo.
Sem adeus.
Tenho sentido seu pai distante, indo embora de mim. Resisto à tentação de pedir que ele fique. Não devo - não devemos. É hora de ir e deixar em mim o que precisa ficar. Como eu previa, as lembranças já não são frescas. É uma alegria e um alívio ter escrito. Distante da intensidade, por vezes acho pouco o que sei dele. Que sorte haver amigos e amor para me mostrar um tanto mais. Inevitável: você também fará isso. Nesse tempo todo de falta, procurei o costume como saída. Fiz da ausência um hábito, até que ela virasse paisagem. Mas de vez em quando entra um vento de dor por uma fresta insuspeita, atingindo minha pele com um frio de tristeza. Talvez eu sinta para sempre esses arrepios como quem tem uma doença crônica. Um reumatismo de amor que de vez em quando finca e maltrata. Depois passa. E volta – não há como virar uma página que insiste em crescer de novo diante dos meus olhos. Que insiste em se reescrever. Sei que você me é também, mas, como não me assisto de fora, não me reconheço. Talvez ele o fizesse. A esse paradoxo que me foi legado, dou o nome de sorte. É que ele não foi embora sem antes cuidar de renascer em mim.
Colheita
Eu procurava o amor em jardins de cactus. Vinha buscando o fruto em árvores erradas, e nas mordidas sentia o gosto azedo, que amarga no fim da boca. Colhi amores podres, comidos pelo tempo e dor.
Foi preciso paciência – e um outro tempo – amadurecendo um fruto para colhê-lo doce, suave, terno e delicado. Simples como naturalmente é.
Eu imaginava haver segredos por trás dos espinhos. Mas é puro acaso que amores e espinhos se encontrem em botões abertos ou fechados. A rima entre amor e dor é armadilha.
O verdadeiro fruto está ao alcance das mãos – mas é tão rasteiro, que quase não se vê. É preciso passear sem fome para enxergá-lo redondo, vermelho. Para então mordê-lo distraído como numa tarde de chuva.
Eu me pari mil vezes. Nova, diferente, corajosa.
Atirada, confiante, inteira. Aquela urgência que eu não compreendia era a minha urgência de ser...
ORAÇÃO AO TEMPO
Tudo o que lhe peço, Tempo, é que me salve do meu coração. Dessa entrega absurda de ir até o outro e me deixar sem mim. O que lhe peço, Tempo, é o caminho do meio. Aprender a receber antes de me entregar. Ver além. Peço que me devolva a mim mesma. Que eu me reconheça e me acolha. Me aqueça em meus buracos escuros e definitivamente me toque. Que eu saiba cuidar somente do que me cabe. E deixe ir. E deixe vir. Natural, inteira e suavemente. Que a vida me encontre distraída, sem a ânsia de buscar o que não sei. O que não vale. O que não é. O que lhe peço, Tempo, é a aceitação do tempo e da vida como ela é. Sei que ela me aguarda plena e legítima. Mostre a ela o caminho até mim. Enquanto isso, me adormeça em paz até que a verdade me alcance como um beijo. Tire de mim essa ânsia de ser feliz, inverta a ordem das coisas e assopre no ouvido da alegria o momento de me capturar sem volta. Que eu me aquiete na paz do merecimento, sem dar um passo ou um pio. Que apenas contemple. Que eu resista à tentação de correr para o que ainda não está pronto. Que eu me apronte para a surpresa de um dia simples. Que eu acorde como quem nasce. Amém.