Cássio Jônatas
ANDARILHO AMOR
Meu amor esparrama
Não preciso demonstrar
Meu amor é genuíno
Reflete no meu olhar
Não me interprete mal
Não guardo para ti
É panaceia universal
Não quero te possuir
Meu amor é perdigueiro
Pouco afeito a dinheiro
Ama praia, mar, coqueiro
Ama mãe, pai, lixeiro
Cumprimenta toda massa
Deixa migalhas onde passa
Pra quem está no chão da praça
Pra quem está nos palacetes
Meu amor é poligâmico
Com um olhar ou um espreite
Ao humilde ou histriônico
Deixa tácitos bilhetes
Sem medos e arremedos
Meu amor é um enredo
Com flertes e cortejos
Ama Maria, João e Pedro
Meu amor não tem muros
Meu amor morre de fome
Na cama, causa urros
Sorrateiro, te consome
Meu amor não escraviza
Meu amor não dilacera
É uma delicada brisa
Que extermina uma guerra
Meu amor à terra
Aos grãos e sementes
Amor medido em tera
Afoga-se nas nascentes
Meu amor é ateu
É teu, é réu, é deus
É vivo, não morreu!
Nos versos, eterneceu.
EU ÁFRICA
Acorrentado pela escravidão...
Tenho marcas, sou marco,
Na face trago traços,
Sofrido negro afro.
Acorrentado pela escravidão...
Refém do fenótipo, nasci no cortiço,
A dor me traga, é tanto sacrifício,
Nada me revigora, resta-me o vício.
Acorrentado pela escravidão...
Agonizando eu sigo ermo,
E sinto a falsa liberdade num terno,
Preso no aflitivo quilombo hodierno.
Acorrentado pela escravidão...
Minhas ideias: estanques,
A morte: um baque,
Então suspiro ao som dos atabaques.
Acorrentado pela escravidão...
Venho do Saara, aro a seara,
E enquanto a ferida não sara,
Jogo minha capoeira odara.
Acorrentado pela escravidão...
Com açoite, os senhores tolhem,
E enquanto a dor não aboli,
Meu ópio é o folclore.
Acorrentado pela escravidão...
Minha sina é rastejar,
Na lavoura a dançar,
Dois pra lá, dois pra cá.
Acorrentado pela escravidão...
Conquisto a alforria,
Viro escravo da alegria,
Minha prisão: a fantasia.
Acorrentado pela escravidão...
Perdido, mergulho em teu mar,
Afogo-me em teu branco olhar,
E encontro-me em tua íris negra.
Acorrentado pela escravidão...
Tenho meus desejos cerceados,
Tenho o meu samba censurado,
Mas não calo: sangro os meus versos calejados.
EU SUOR
Sou o suor...
Que brota dos teus poros
Escorre por tuas valas
Te deixa molhada
Provoca o teu calor
Sou o suor...
Que expele da tua face
Peregrina em tua fronte
Impele em teu bojo
Exímio arrebatador
Sou o suor...
Andarilho do teu corpo
Explora os teus traços
Em meio aos abraços
Numa noite de amor
Sou o suor...
Que se perde em tua estrada
Precipita o teu regalo
Esparrama em teu regaço
E esgota o teu vigor.
EU PÁSSARO
Você sabiá
Não sou cegonha
Sou assanhaço
Sou curióso...
Eu mal-te-vi
E quero-quero
Beijar flor
E papar capim.
EU INDIGENTE
Eu, o resto sem eira nem beira
Quem cata os restos na feira
Mais uma escória programada
Mais uma história mal pichada
Interpreto um papel maçado
Reciclo o papel passado
Um papelão: é o que faço
No papelão: deito e me abraço
Vender bala: meu ganha-pão
Correr da bala: destinação
A indiferença: desperta minha dor
A sirene: meu despertador
A lua enche meu saco
Com seu olhar pálido
Nem a terra absorve
O meu chorar árido
O sol nasce, minha pele frita
E minha sombra assombra
Minha voz trava, meu silêncio grita
E meu grito tomba
Varrido pelo vento
Sou mais um excremento
Maltratado pelo tempo
Dormir é meu passa-tempo
Abrigado na solidão
Sou um eterno desvalido
Com o pensar comprimido
E o latido reprimido
Meu signo: cão de rua
Destino: viver no mundo da lua
Guerra: encarar esse mundo insensível
Sonho: tirar essa coleira invisível
Nome: Zé ninguém
Sobrenome: algum alguém
Sem identidade
Sem entidade
Sem idade.
VOZ
Você quer me mudar...
Quer um rosto bonito
Popular, barbeado
Uma chaga mascarada
Você quer me calar...
Quer me impor doutrinas
Calar meus instintos
Uma mente lavada
Você quer me mudar...
Quer me ver na moda
Engravatado, engomado
Uma alma abafada
Você quer me calar...
Só quer ouvir loas
Que soam como música
Palavras deformadas
Você quer me mudar...
Quer me fazer máquina
Raptar meus princípios
Me tonar mais um na manada
Você quer me calar...
Mas falo, brado, grito!
A minha voz vem de dentro
E eu não calo por nada.
Pela doce história
Eu marcho errante
E minha alma levita
Me dá água na boca
E no olhar meloso
Os versos formigam.
LIBERTINAGEM
Cansei de ficar fazendo pose
De falar somente o que te agrada
De trancafiar-me em mim mesmo
De te ver por trás dessa máscara
Sei que se esconde dentro de si
Massageando o teu ego inflado
Mas não quero ser mais um santinho
Nem só mais um anjinho sem asas
Quero pisar à tua cabeça
Quero comer os teus miolos
Me alimentar do teu murmúrio
E zombar da tua desgraça
Quero precipitar teu choro
Quero arrancar a tua roupa
Quero te fazer meu mártir
Quero calar a tua boca
Então, por que não desacatar?
Por que esconder meus impulsos?
Por que mentir para o espelho?
Por que não cortar meus pulsos?
Não deixo a moral me enforcar
Nem você me deixar pra trás
Mas se houver um paraíso
Sei que será tarde demais
Pois só venero o agora
Faço pouco caso da morte
Meu combustível é a birita
A libertinagem é meu mote.
TRAGO
repleto de cicatrizes
aparento-me belo
trago um sorriso
minto, engulo a dor
tento omiti-la
trago uma droga
choro, me importuno
e dentro de mim
trago feridas
feridas em carne viva
jorram palavras:
causam um estrago.
MEU FOGO
Meu fogo pode te incendiar, te fazer pegar fogo. Pode te queimar por dentro, te inflamar por fora e até te sufocar. Pode acender a tua chama e servir como luz em meio à escuridão, assim como também pode te ofuscar. Os ventos tentam me apagar, mas acabam potencializando minha ardência. Aumentam a minha vividez, que carboniza os teus medos, te arrebata e excita. Faz-te dissipar todas as suas forças e queimar de prazer.
Meu fogo não te procura, basta você faiscar para encontrá-lo. E você não precisa crer nele, outras chamas mais vivas podem te acalorar. Mas, se buscá-lo, entregue-se de corpo e alma. Assim, ele vai te domar, te estafar, te fazer ficar em brasa e fumaçar desejos. E saiba que você pode arder sem culpa e até incitar meu fogo, atritar-se em mim, unindo nossas chamas, permutando nosso calor, enquanto te marco com carvão.
A fumaça gerada pelo meu fogo esvai-se, adentra à tua boca, visita as tuas vísceras e sai pelas tuas narinas, avermelhando os teus olhos. Com meu calor, você colhe ternura e aumenta a tua chama, resgatando outras chamas quase apagadas. E não precisa transgredir para sentir meu fogo, sou chama perene e impermanente; só quero te esquentar. Sou fogo em brasa que te deixa sem ar, te abraça e acolhe em noites de frio. Aproxime-se, minha chama te chama, sinta-me, deleite-se, tente até me apagar, mas cuidado pra não se queimar.
MEU FOGO (2)
Você quer se aquecer e borbulhar
E encontra a minha fornalha
Quer trocar calor e perder o ar
E meu fogo falho em teu corpo espalha
Mas será que meu fogo não irá te queimar?
Será que minha fumaça não irá te estafar?
Será que minhas faíscas não irão te hipnotizar?
Será que meu carvão irá te marcar?
Será minha fornalha não irá te domar?
Então, por que se alimentar da minha chama?
Por que se afazer à minha labareda?
Será que é seguro você se aproximar?
Será que meu fogo é amigo?
Será que meu fogo é aprazível?
Quem inflamou meu fogo?
Será que existe fogo?
Noite fria, escuridão; te acomete a solidão
Será que conseguirei te esquentar?
Será que minha chama irá te iluminar?
Ou será que não mais existe chama?
E se ainda não estou apagado
Por que continuar a faiscar?
Talvez porque eu queira te acalorar
Te ensinar a brincar com fogo
Fazer você ficar em brasa
Adentrar em teu corpo e alma
Avermelhar teus olhos encantados
Reavivar-te e estar ao teu lado
Por isso, te aqueço mesmo impermanente
Sou fogo caliente e reluzente
A chuva tenta me arrefecer
Fumaço, renasço das cinzas
Ainda quero te incendiar
Quero te deixar sem ar
Mas minhas faíscas não cintilam mais
Minha fumaça me sufoca
Minha chama se cala
Apago-me.
MEU CANTO
Canto quando estou sozinho
Canto pra me decantar
Canto, mas não te encontro
Sei que meu som vai reverberar
Sei que meu som vai reverberar
Canto com a voz embargada
Canto pra você chorar
Canto e depois recanto
Em meu recanto quero te esquentar
Em meu recanto quero te esquentar
Canto e te causo espanto
Canto de cisne e até de sabiá
Canto com o olhar escanteado
No canto da tua boca eu quero pousar
No canto da tua boca eu quero pousar
Será que o meu canto agrada?
Será que vou te encantar?
Sei que o meu canto é simples
Mas em meu canto quero te abrigar
Mas em meu canto quero te abrigar
Canto pra te dar carinho
Canto pra te conquistar
E como te quero em meu canto
Eu crio um canto pra você voar
Eu crio um canto pra você voar
Canto no canto da sala
Canto em qualquer lugar
Canto alto, canto baixinho
Em teu ouvido eu quero morar
Em teu ouvido eu quero morar
Canto com os olhos fechados
Canto e não vou parar
Por isso, canto canto, canto,
Canto, canto, canto, canto
Canto, canto, canto, canto
Canto, canto, canto, canto
Canto até ficar rouco
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar
Canto para ecoar...
AMARRAS
Queria-saber-fingir...
Seguir-em-frente
Sem-moral-alguma
Levado-pela-corrente
Queria-saber-fingir...
Estar-de-acordo
E-aprender-a-sorrir
Com-a-corda-no-pescoço
Queria-saber-fingir...
Ser-mais-um-careta
Não-sair-da-linha
Andar-em-linha-reta
Queria-saber-fingir...
Estar-de-mãos-atadas
Ser-seu-coligado
Não-ligar-pra-nada
Queria-saber-fingir...
Não-ter-mais-garra
Agarrar-me-às-verdades
E-aceitar-as-amarras
Queria-saber-fingir...
estar-acorrentado
estar-atado
estar-alinhado
estar-ligado
estar-agarrado
Queria-saber-fingir...
Porque-dói desacorrentar-me
Porque-dói desatar-me
Porque-dói desalinhar-me
Porque-dói desligar-me
Porque-dói desgarrar-me
Porque-dói ser eu.
Reformar
o meu amor
por isto espero.
Informar
meu dissabor,
a falta de esmero.
Conformar?
de forma alguma,
ainda te quero.
Perversos conversos
Com versos inversos
Em versos travessos
Conversam avessos
Diversos universos
Universo de versos
De versos reversos.
DESAF(L)ORO
Não sei como nasci
Não sei por que nasci
Mas sou flor como vocês
Por que não me enxergam?
Por que me cospem?
Por que me pisam?
Queria estar num jardim
Queria ser bem cuidada
Queria estar em bons ares
Queria ser irrigada
Porém estou ressecada
Estou de cara pro nada
E brotei assim desbotada:
Quase cinza
Quase cinzas...
VENENO
Vai-se o veneno travestido
Ultrapassando as barreiras fingidas
Transpassando as veias dilatadas
Vai-se com um doce amargo alarido
Desencarcerando o sorriso oprimido
O saboroso escárnio da trapaça
Esvai-se em total descompasso
Embebendo as almas alvas
E inebriando os instintos
Com goles democráticos.
SONHO
Enlevado, levado
Me toca de leve
Um leve sonho
E no sonho levo
Doces desalinhos
Que me desafiam
E desfiam
Vãs costuras
Que se soltam
Trançam e saltam
Perambulando
Sem preâmbulos
Não arredam!
Enredam traçados
Traços diversos
Versos que calam
E colam na alma.
LIMITADO
Ah, que vida bela
Esse pleno universo
Que transformo em cela
E nela, tudo tenho
Por tudo eu espero
E a nada me atenho
Tenho esses pés
Que de tão calejados
Se plantam, calados
Tenho esses braços
Que muito amassam
Abraçam sem laços
Tenho esse corpo
À flor da pele
Que o toque repele
Tenho essa mente
Calabouço de ideias
Que tanto mente
Tenho esses lábios
De beijos molhados
Repletos de lábia
Tenho esses olhos
Olhos tão profundos
De lágrimas rasas
Tenho essa carne
Essa carne tão viva
Que pouco encarna
Tenho esses versos
Esses traços travessos
Que se fingem diversos
E tenho esse eu
Esse eu tão esperto
Que se perde no breu.
MINH'ALMA
Minh'alma cansou de mim...
Libertou-se do confim
Foi buscar novos alentos
Minh'alma cansou de mim...
Partiu sem se despedir
Repartindo meus momentos
Minh'alma cansou de mim...
Está pairando por aí
Se guiando pelos ventos
Minh'alma cansou de mim...
Foi passear dentro de ti
E afagar-lhe em silêncio.
Te quero tanto...
Então te tento
Você me tenta
E em meu teto
Eu te atento
Te quero tanto...
Quero amar-te
Amor de fato
Tatuar teu âmago
Pelo tato
Te quero tanto...
Que te espeto
Que te espanto
Provo teu prato
Bebo teu pranto
E, no entanto
Te quero mais...
Mais que tanto
Tão mais que tanto
Que fico tonto.
MEU BEM
meu bem...
não vem com essa
de que está tudo bem
os teus olhos
não brilham mais
nossas mãos
já não se atêm
por que
mentir sem razão?
por que
não diz o que tem?
por que
tem de ser assim?
por que
não vai mais além?
meu bem...
me olha nos olhos
volta pro teu harém
não se esquece
desse alguém
que te ama
e não se esquece
desse alguém
que é refém
do vai e vem
das tuas lágrimas.
MANHÃ DE INVERNO
deitado sobre a areia
traquina
sentindo a leve brisa
menina
com as ondas sussurrando
ao meu ouvido
as nuvens esparsas
sorrindo
e a chuva com seu
beijo terno
numa manhã
de inverno.
Antes
Eu era só um copo...
Emborcado, sozinho
Cheio de vazio
Beijando o solo
Agora
Sou um cálice...
Aos cacos, esguio
Repleto de vinho
Vertendo em teu colo.