Carina S. Barros
Quando éramos crianças, eu, minha irmã e meu irmão íamos caminhando com o papai pelas ruas do jóquei até chegar a casa da vovó, algumas quadras depois. O percurso deveria durar uns dez minutos, mas gastávamos mais de uma hora. O motivo da demora era que papai dava bom dia a todas as pessoas, conhecidas ou não, que cruzava o nosso caminho. Ele parava para conversar com as tias, os tios, as primas, os primos, a comadre, os amigos, o padeiro, o verdureiro. Mamãe dizia que ele andava fazendo reisado. Papai tinha uma mania bonita de olhar as pessoas e enxergá-las para além da sua roupa, gênero, crença, status. As histórias das pessoas sempre lhe interessava mais. Depois que papai voou, as lembranças mais bonitas que me recordo, são dos momentos mais simples que compartilhamos. Essas coisas miúdas que o cotidiano apressado tenta roubar de nós. Que eu nunca esqueça que no fim de tudo, somente o afeto, as histórias vividas e o bem que damos permanece. O resto, se perde no tempo.
Amanheceu, olhei para o relógio e já era hora de levantar. O céu azul lá fora, mas por dentro o dia estava nublado. Uma saudade doída. Hoje, vinte e oito de julho, seria aniversário do papai, que voou nessa pandemia. Respirei fundo e segui para o trabalho. Ao chegar, organizo as coisas, finjo está tudo bem, seguro firme as lágrimas. De repente, entra na sala Dona “Carolina de Jesus”, meu primeiro atendimento. Ela senta, e com um olhar sereno começa a contar um pouco da sua história. Em junho, sua residência foi incendiada, perdeu tudo. O esposo sofreu queimadura de último grau, faleceu dois dias depois. Todos os seus documentos foram queimados, o seguro-desemprego que estava para receber na boca do caixa, foi adiado até resolver as pendências. Os móveis viraram cinzas, não sobrou nada. Sem dinheiro e trabalho, a família está sobrevivendo através de doação. O filho mais velho encontra-se em privação de liberdade. “Carolina de Jesus”, até tenta assim como eu segurar as lágrimas, mas não consegue, e chora, chora, chora. Embora as nossas histórias sejam diferentes, as nossas dores e tristezas são tão parecidas. Nós, mulheres negras, carregamos o mundo nas costas, e muitas vezes, o choro não nos é permitido. Historicamente somos ditas como fortes e guerreiras. As que suportam tudo. Hoje, Carolina de Jesus veio me lembrar que ser forte todo dia é desumano demais. Principalmente nessa pandemia, com esse desgoverno da morte, com esse Brasil com tanta dor, luto, injustiça e fome. Ainda bem, Carolina de Jesus, que nós temos nós. Seguimos, às vezes longe, mas sempre juntas. Obrigada por me fazer reconhecer a minha humanidade, fragilidade. Obrigada, muito obrigada.
Reconhecimento
Reconhecimento rima com nascimento
Reconhecer talvez seja isso de nascer
Nascer dentro do outro
Conhecer a vida fora de mim
Quantas histórias se escondem dentro de uma pessoa?
Quantos sorrisos, ato de coragem, vitórias, derrotas, sonhos cabem dentro do outro?
É preciso muita paciência para aprender a conjugar o verbo reconhecer
Eu reconheço
Tu reconheces
Ele reconhece
Nós reconhecemos
Nós, primeira pessoa do plural tão fundamental
Mas tão pouco conjugada nesse mundo
Onde aprendemos naturalmente a reconhecer o famoso da televisão
E esquecemos de reconhecer o valor do porteiro, do gari, do pedreiro, do padeiro
Dessas pessoas benditas que chamamos de gente comum
Para reconhecer é preciso conhecer
Conhecer o outro para além do cargo, status, roupa, cor da pele
Para além da aparência
É que reconhecer não rima com parecer
Parecer nem é ser
Bonito mesmo é ser reconhecido por ser quem somos
Com todos os nossos defeitos e qualidades
Reconhecimento que ultrapassa o externo e alcança a gente por dentro
Reconhecer
Ser reconhecido
De um jeito sincero, honesto, humano e bonito
Reconhecimento talvez seja isso
Não sei dar significados exato as palavras
Por isso sigo tentando escrever poesia
Reconheço
São tempos estranhos, mas não perco a esperança
São tempos estranhos onde o verbo vencer se confunde com o ter, poder, parecer...
São tempos estranhos onde as pessoas correm contra o relógio para possuir coisas que passam na televisão e que no fundo não alcança o coração.
São tempos estranhos onde o verbo amar se confunde com o precisar, utilizar, apegar, trocar...
São tempos estranhos onde as pessoas acreditam que podem comprar o afeto, a amizade, a cumplicidade em prateleiras de supermercado.
São tempos estranhos onde cada um caminha sozinho em busca dessa tal felicidade, como se tudo e todos fossem concorrentes, inimigos...
Ninguém se olha, ninguém se toca, ninguém se sente.
São tempos estranhos, mas não perco a esperança
Me sinto uma estranha porque insisto em acreditar em novos dias
Dias onde os relógios não ditarão o tempo das coisas que não tem tempo, nem preço.
Dias onde não será necessário acumular bens que no fundo nos rouba a própria vida
Dias onde doaremos um pouco de nós para cuidar e fortalecer o outro que caminha ao nosso lado
Dias onde não seremos valorizados pelo nosso cargo, status, contacheque,
mas sim por aquilo que somos e pelas histórias que carregamos.
Dias onde sem pressa voltaremos a nos encantar com o arco-íris, a primavera, o por do sol, o céu azul,o canto dos pássaros, o voo das borboletas...
Dias de encontros sinceros, abraços apertados, sorrisos abertos...
Dias bonitos, coloridos, de flores, de gente, de histórias. muitas histórias.
Dias em que celebraremos todos os dias, dia por dia, dia-a-dia essa bendita chamada vida que é rara, cara e acima de tudo frágil, muito frágil.
São tempos estranhos, eu sei, mas não perco a esperança
A esperança é que me move por ora nesse caminhar
Conte-me uma poesia sobre os seus dias
falando das coisas bonitas que lhe faz sonhar.
Conte-me uma poesia sobre as suas lágrimas derramadas
que lhe fizeram recomeçar.
Conte-me uma poesia sobre os seus medos e
defeitos nós somos humanas e temos
sempre a chance de aperfeiçoar.
Conte-me uma poesia sobre os seus momentos de alegria
que lhe fizeram dar risadas sem parar.
Conte-me uma poesia sobre os dias de chuva que molharam
o seu jardim e trouxe a esperança que a primavera logo logo iria chegar.
Conte-me uma poesia sobre os amores correspondidos
que lhe fizeram acreditar que reciprocidade
dar sim pra se encontrar.
Conte-me uma poesia sobre a sua saudade mais doída
que lhe faz uma pessoa forte e bonita
porque certamente saudade é sinônimo de amar.
Conte-me uma poesia sobre os seus dias ensolarados,
sobre os abraços apertados, os momentos simples ou
sobre as coisas miúdas que lhe faz seguir no caminhar.
Conte-me uma poesia, só uma poesia
que me faça esquecer por um instante desse mundo tão estranho,
dessa gente tão mesquinha. covarde e individualista.
Uma poesia, só uma poesia que me faça acreditar
que há muito mais amor, justiça, coletividade, solidariedade e empatia
escondida em algum lugar.
Conte-me uma poesia sobre a sua vida... a vida, as vidas.