Camila Chaves
Ah, Coração de margarina
Ansioso por derreter
Não se arrepende de sentir
Quão derrete, quão é feliz
Razão para deixar de assim ser não ousa procurar,
prefere desconhecer
Ele ali,
renegado por si próprio,
jogado ao léu,
mal se lembra de quem foi.
Recostado num banco sujo
conta os carros que passam na avenida,
sem propósito pra vida.
Será que hoje terá comida?
É livre, mas vive limitado a uma praça.
É homem, mas criou raízes num canteiro.
Talvez pense: "nunca desistirei".
Se isso é bom ou ruim, não sei.
Ele não tem direção, é como um plebeu sem rei.
Maltrapilho, fétido...
Será que sempre fora assim?
Alma sempre tivera, apesar de qualquer adversidade.
Disso sempre se lembra até com certa facilidade
e julga-se importante sem jamais ter sido premiado com medalha ou troféu,
simplesmente por saber já ter sido para alguém como um pedaço de céu.
Da minha janela preferida só se via o que era sereno, o que trazia paz e conforto. Vidraça translúcida e reluzente fazia questão de mostrar de um novo ângulo tudo o que se passava. De início, receio. Depois, confiança, respeito e até crença. Ensinava a virtude da calma, às vezes em silêncio absoluto, no qual se podia tudo. O tempo não era mais inimigo, era aliado, pois parava a cada reflexão, mesmo que inconclusiva. Tudo era motivo: sol, sorriso, chuva, estranhas dimensões... Dizia do jeito dela: "O chão está sujo, mas é simplesmente superfície e a roupa que se lave depois. Senta aqui sem pressa e vamos pensar na vida, conversar sem rumo, sem compromisso com o pertinente". Mostrava um ponto de vista estranho a mim até aquele momento, inovava e, aos poucos, me encantava. Não é que esquecesse o meu pensar, mas mesclava ao dela e assim me fazia sentir mais rica. Quanto mais olhava através daquela janela mais ela me absorvia e eu, a ela.
Reluzente sem ser ouro
Mesmo assim é tesouro
Não se esconde nem mesmo se guarda
Gosta de brilhar e ser admirado
Vaidoso como é acredita que é sábio
Esse é seu único defeito
Que com algum carinho pode ser superado
Pois tem muito que lhe compense
Ideia, afago, sugestão
Tudo sem suspense
Paciente, cheio de encantos
Certos tesouros ao se dividir são multiplicados
Invadiu meu ser, me consumia sem dó
Um calor que se instalava por todo meu corpo
E em minha cabeça era capaz de dar nó
O desejo era gritante e eu já rouca e cansada
Sem mais condições, não aguentava
Só naquilo eu pensava
Apressada fui ao seu encontro
Ávida pra curar meu pranto
Enfim cheguei, meu doce deleite
Na geladeira um litro d'água
Matei assim minha sede!
É espelho, intransponível
À simplória vista, patente
À sensível, profundeza sem fim
Prazer é olhar-te e me deixar envolver
É oceano, intrigante
Obscura superfície
Tanto mistério esconde
Prazer é mergulhar-te e me deixar absorver
É noite, fascinante
Breu, que não impera absoluto
Graças ao luar e às estrelas
Prazer é admirar-te e me deixar amolecer
Vestia os olhos com amor para melhor o outro ver
Mesmo que feio lhe parecesse, moldava com ternura o seu perceber
Por detrás da carapaça alguma beleza havia de encontrar
E se todo mundo é feito de defeito, tantos seria capaz de suportar
Caso não entendesse procurava razão, e se não encontrasse...
Ah, deixa estar!
A beleza da gente está na dificuldade que há em executar
Essa tarefa impossível que inventamos de a cabeça do outro desvendar
São infinitas as diversidades para assimilar
E, no mais:
O próximo amar não é o mesmo que as diferenças aceitar?
Bem mais observadora que o usual, criticava a si mesma e a todos. A ideia fluia fora do seu controle, mas pela boca não poderia escapar. O filtro de bom senso a seguiu e se tornou super-rigoroso. Presas ali dentro, as tais ideias borbulhavam muito mais. O céu era expressão sem ninguém saber, pois ela não poderia contar. Tudo era ridículo e sem sentido. Ela só observava, em paz por fora e por dentro espanto. Tudo novo!
Seu pensamento flutuava sem parar. Ela, por sua vez, era só reflexão. Em cada detalhe uma nova descoberta. Olhava sem pudor, pois, para ela, tudo aquilo não passava de uma mostra, um cenário montado, uma ideia viva e gritante bem na sua frente simplesmente para assistir e absorver.
A impressão que tinha era que nenhum deles percebia o que se passava. Só ela entendia bem o que estava acontecendo, mas não se arriscaria a começar a falar. Deixou os outros de lado, aquele momento era só dela. Iria então desfrutar daquele lapso de consciência eloquente porque tinha certeza de que seria o único momento de sua existência, como uma luz ou uma treva que passaria sem voltar ou deixar rastros.
Se sentia curiosa com tudo aquilo, mas feliz não poderia dizer que estava pois sabia não ter preparo para aceitar aquela outra percepção. Aquelas ideias eram grandes demais para sua cabeça (que nunca foi pequena).
Sonho quase adormecido
Quase é consciência
Quase é elevação
Lúcido devaneio
Nele pode tudo
Cria
Mata
Sente
É
Como dança
Ora leva
Ora levam-no
Profetiza
Quase decide
Por vezes
Do controle escapa
Criatura
Avivou-se
Ganhou nariz
Desvencilhou-se
Rende-se o autor
Habituado a tal audácia
Levemente
Permite-se levar
Deita
Deixa
Sonha
Dorme
Acorda, então
Ideias em turbilhão...
Será intuição?
Sozinha na multidão
Como tantos outros
A sós consigo mesma
Esperava por resgate
Soprou a mensagem
Qual será o destino?
Naufragou numa ilha
Mas sonhava sair dela
Seria possível?
Imaginava-se voando
Encontrando a paz
Desejada paz de alma
Idealizava o bem viver
Que ali não poderia estar
Juntou-se a outro náufrago
Compartilhavam tal propósito
Deram as mão
Eram fortes
Seguiram com esperança
De início planejaram
Dia após dia, pouco a pouco
Traçaram uma rota
Detalhes e mais detalhes
Arquitetaram uma embarcação
Testaram por precaução
Era hora de esperar
O dia perfeito chegaria
Iriam embarcar rumo a paz
Quanta expectativa
Viveram naquela agonia
Por longos tempos
Enfim o tal dia se aproximava
Conforme precisos cálculos
Seria no próximo entardecer
Eis que surgia o esperado crepúsculo
Que fascínio
Um lindo céu de batata doce
Observar era como fazer uma prece
Era como estar em transe
Quando se deram por conta
Tarde demais, que sorte
Foi-se o tal momento perfeito
Não embarcaram, nem esbravejaram
Tudo era fantasia
A paz que tanto almejavam
Dentro daquela velha ilha estaria?
Não foi necessário embarcarem rumo à paz
A paz embarcou rumo a eles
Invadiu suas almas com sutileza
O esperado pôr-do-sol
Foi mesmo digno de espera
Tal qual realeza
Defendia a ideia
Com fé e sofreguidão
Argumento tinha de cor
Persuadiu
Foi convicto
Noutro dia repensou
Cambiou
Não enganou
A percepção mudou
Impetuosa
Toma de assalto
Faz a cabeça
Muda a opinião
Cria verdades
Olha nos olhos
Toca sem pudor
Dispara o coração
Estado de graça
Querer bem ao mundo
Até com o dia chuvoso
Satisfação
Tira o senso crítico
A outros olhos é ridículo
Mas quem se importará
Quando tratar-se de paixão?
Na inquietude dessa calmaria
Mergulho no meu infinito
Em busca de encontrar
Quem sempre esteve aqui
Um velho conhecido
Que, a rigor, nunca conheci
Encoberto por mistério
Nem ele sabe o quanto é
Já foi feio e bonito
Alegre e chato
Ignorante e sabido
Não que não tenha sido genuíno
É mutante
Transforma-se, adapta-se
Reinventa a si mesmo
Quem assiste analisa, opina
Esquecendo ou não sabendo
Tudo é transitório
Cabeça de algodão
Pés um tanto acima do chão
Olhar perdido
Amor correspondido
Nada além importa
Se a criatura está em volta
Seja presente
Ou mesmo só dentro da mente
Coração dispara
Pensamento longe
Monta e remonta cenas
Tira o sono e faz sonhar
O sorriso é bobo e fácil
Abençoa e é grato
Tudo muito encantador
Até para aquele que ficou sozinho
Invejoso ali, como espectador
Linhas mal traçadas
Sentimentos desejosos de saltar
Do coração para o palpável
Tudo tão verdadeiro, real
Por ora e para sempre agora
Eternizados em letras guardáveis
Pois que o coração tem memória frágil
Capaz de esquecer até mesmo a sensação mais admirável
Mais um dia
Um dia a mais
Lindo por fora
Por dentro às vezes chora
Sozinho
Inquieto
Faz que está tudo certo
Mas ainda sente dor
Como pode deixar ardor
Algo que se mostrou assim
Tão vazio...
De amor
Um anjo é algo celestial,
Um amigo é uma oportunidade real de conhecer-se melhor.
Na semelhança que há entre esses dois,
O melhor mesmo é encontrar um anjo amigo ou um amigo anjo.
Um desses com quem se aprende e cresce mesmo que ele não saiba.
Ter um amigo desses significa saber que
Longe ou perto, em contato ou não, o querer bem nunca cessará,
Pois esses tais amigos anjos ou anjos amigos são eternos.