Caio César Perez
Jardim da Eternidade.
Ela sempre adorara esculturas, mas seus gostos não eram o que se poderia chamar de normais. Talvez por morar muito próximo a um cemitério tinha tanto fascínio pelas lúgubres estátuas de lugares assim.
Era uma garota simples, sem grandes ambições e levava uma vida relativamente normal. Depois da morte dos pais passou a morar sozinha naquela casa que todos achavam esquisita, os vizinhos diziam que era assombrada e não tinham coragem, e nem vontade de se aproximar de sua - também estranha- moradora.
Por ser uma pessoa solitária gostava muito de passear no silencioso cemitério apreciando as esculturas que adornavam os túmulos. Mas dentre todas havia uma em especial que a impressionava, um anjo com aparência muito triste, pensativo e com enormes asas que envolviam todo seu corpo. Ficava horas admirando essa estátua e tentando adivinhar de quem poderia ser aquele túmulo já que não possuía nenhuma identificação.
Enquanto vagava pelas alamedas ouvindo o barulho das folhas levadas pelo vento ficava lembrando dos sonhos que tinha durante a noite. Desde pequena tivera sonhos intrigantes, mas nunca comentava o fato com ninguém. Sonhava que passeava pelo cemitério a conversar com seus habitantes e até mesmo com suas estátuas. Às vezes, via também seus pais e parentes que já estavam mortos, mas atribuía esses sonhos à sua vida monótona, sempre a abrir as janelas e portas com vista para aquele enigmático lugar.
Naquele dia em especial deteve-se por um tempo maior em frente à figura do anjo, lembrando-se do sonho da noite passada. Ela havia parado como sempre para observá-lo, quando de repente a estátua tomara vida e viera conversar com ela. Durante um tempo que lhe parecia eterno eles conversaram e ela finalmente desvendara o mistério, ele lhe contara que o túmulo era dele, um escultor desiludido que se suicidara e a imagem do anjo que ela tanto admirava era na verdade uma espécie de auto-retrato que fora sua ultima criação.
Acordara naquela manhã fria com uma terrível sensação de solidão e decidiu passear pelo cemitério. Lembrando-se do sonho e olhando para a estátua uma pergunta não lhe saía do pensamento: seria aquela realmente a imagem do artista? Se fosse, ele deveria ter sido muito belo com aquele semblante melancólico, mas jamais saberia, pois não tinha coragem suficiente para sair por ali perguntando.
Depois desse sonho outros vieram bem como vários outros passeios, até que um dia algo extraordinariamente estranho aconteceu, de longe viu ao lado do túmulo do suposto artista um movimento bastante anormal. Só quando estava mais próxima conseguiu distinguir o que era, havia alguém esculpindo com extrema rapidez uma estátua no túmulo ao lado.
Naquele clima surreal foi se aproximando aos poucos e percebeu que o anjo não estava, mas não conseguia entender exatamente o que estava acontecendo. Percebendo a presença estranha o escultor virou-se para olhá-la, o susto foi tão grande que ela quase caiu. O escultor não era ninguém menos que o anjo, não a estátua, mas sim um ser de carne e osso, mas a surpresa maior veio quando olhou para o trabalho que ele acabara de concluir.
Era outro anjo, porém a figura era feminina e se parecia incrivelmente com ela.
Devo estar sonhando – pensou ela, completamente confusa.
Com o sorriso mais enigmático que ela já vira, ele disse:
- Sim, querida você está sonhando. A única diferença é que deste sonho você jamais acordará!
O último voo.
...num movimento alienado, Aiumy olhou novamente pela janela impacientemente como se esperasse alguém. Estava inquieta e por isso foi buscar um cigarro no criado mudo do seu quarto, respirou fundo e foi caminhando o que lhe pareceu uma maratona. Colheu seu último cigarro do sexto maço que comprara junto de outros cinco a quatro horas. Acabou a munição, pensou consigo mesma, está chegando ao fim.
Sentou-se então na cama para acendê-lo, suas mãos tremiam incontrolavelmente o que dificultou o processo. Quando começou a queimá-lo fechou os olhos como se tentasse acalmar-se, como se fosse conseguir. Contou calmamente até 10 e depois deu uma tragada, pensou estar mais calma, mas a essa altura do campeonato Aiumy não conseguiria relaxar.
A sua frente mirava sua penteadeira desorganizada: quinze tipos de pincéis de maquiagem espalhados por todo o móvel, um curvex, seu estojo de sombras com cinquenta cores diferentes, um estojo de blush com seis tons e ainda 23 batons em todas as tonalidades de vermelho ocupando todo o espaço. Havia também perfumes, Carolina Herrera, Caron's Poivre, Jean Patou's Joy, Imperial Majesty, Chanel n°5, além de infinitos elásticos de cabelos de infinitas cores, grampos com e sem brilho, inúmeras jóias e algumas bijuterias. Por último e não menos visível, uma garrafa de Dom Pérignon vazia e alguns resíduos de sua fuga mais rápida. Alguns papéis, notas fiscais, contas e cartelas de remédio se via por ali também. Acima e refletindo tudo aquilo havia o espelho, que além de suas porcarias refletia o seu rosto cansado o qual não transparecia a tensão que ela sentia no momento.
Em uma tentativa de não enxergar sua desorganização, que sua mãe sempre considerara sintoma de loucura, olhou para o lado. Tentativa frustrada. Agora olhava seu criado-mudo ainda mais desorganizado, livros embaixo de tudo, 4 ou 5 exemplares, Clarice, Drummond, Machado, Nietzche, discos espalhados, pois adorava uma velharia. Ao lado deles seus óculos e a caixa do seu aparelho móvel: ambos inúteis. Muitas bolinhas de papel amassado além de embalagens de barrinhas de cereais de baixa caloria. Havia também o dobro de caixas de remédios, bulas, cartelas, receitas, copos meio vazios e um cinzeiro, o qual não se podia mais enxergar a imagem do fundo, muito menos qualquer outra parte do objeto que carregava bitucas e cinzas de quatro dias.
E agora, uma última bituca.
Acabou-se o cigarro então foi à janela conferir a presença de ninguém. Abriu a porta da sacada e demorou-se admirando as pessoas-formigas lá embaixo, era o vigésimo primeiro andar do prédio. De repente ao longe, talvez vindo da sala - agora não fazia idéia de onde colocara suas coisas - ouviu seu celular tocando Edith Piaf - Non Je Ne Regrette Rien. Irônico. Deixou tocar.
Tocou de novo. Ignorou. Não desistiu. Aiumy foi atender. Não quero, não quero, não quero, pensou alto, mas esqueceu de repetir mais uma vez para ir às quatro direções. Quando chegou parou de tocar, ela respirou e então tocou novamente. Somente de olhar o número não gravado seus olhos se encheram d’água. Não estava armazenado, mas ela sabia exatamente quem era. Atendeu, gritou, respondeu, esperneou. Do outro lado era o contrário: a outra pessoa respondia fria e indiferentemente. Aiumy desligou e jogou o celular no sofá, mas não havia dito adeus.
Olhou pensativa para o sofá, caçou o celular entre os cobertores e restos de comida. Mandou uma mensagem, uma palavra. Desligou definitivamente o aparelho e voltou ao quarto.
Dirigiu-se a penteadeira, sentou-se na banqueta, aspirou a ultima fileira e pensou, quem diria finalmente poderei me livrar desse vício. Olhou-se, e agora em seu rosto manchado de lágrimas transparecia seu sofrimento, porém havia prometido: "vou ser fiel ao rosto que criei". Selecionou suas maquiagens e se pintou, tornou-se perfeita novamente como era (re)conhecida, demorou quarenta e cinco minutos nessa última atividade e esforçou-se para não borrar, nem haver defeitos.
E então correu para sacada, até lembrar-se. Voltou até o criado-mudo, selecionou aleatoriamente uma das bulas, qualquer pedaço de papel serviria e escreveu alguma coisa pequena e somente nas bordas.
Voltou a correr para a sacada. Abriu a porta, apoiou-se com as mãos na mureta e olhou para baixo, ainda na sua incessante busca por ninguém admirando as pessoas-formigas. Pôs força nos braços, ergueu-se e ficou em pé na mureta, equilibrando-se com a respiração que aprendera na ioga.
Aiumy fechou os olhos, sentiu duas lágrimas caindo e seu coração pulando, seus braços se abrindo automaticamente em posição de asas e seu corpo foi despencando lentamente e para quem a entendia, percebeu.
Aiumy não caia, alçava voo.