Bernardo Almeida (www.bernardoalmeida.jor.br)
Leito
Em terreno árido, o homem padece.
Em disputas vãs, o homem se degrada.
Em dias cinzas, o homem perde a graça.
Em seu sorriso ameno, o homem encontra a paz.
Em vozes autoritárias, o homem perde a compaixão.
Em mãos agressivas, o homem perde o amor.
Em dogmas, o homem perde a liberdade.
Em seus seios, o homem conquista o direito de existir.
Bernardo Almeida
Geração exonerada
Na distinção entre um sorriso e uma lágrima
Pende para o absurdo desejo da catástrofe
Uma pavorosa mania não mais possível
De ser expressa por meio de gestos calculados
Os movimentos, seqüencialmente imperceptíveis,
Protegem o esquecimento que tomará conta da sua alma
Descarnada, desnuda, etérea, imaterial
Dilacerada e agredida como cada milímetro da sua ossada
Escondes este peso em um jazigo distante
Onde apenas olhares mortos te alcançam
Colabora com a terra que fornece a colheita
Da qual tanto te beneficiaste em vida
Colha agora a raiz, e deixa o fruto para os que restam
Contentas-te com a jaula em que te encerras
Sem praguejar contra o fardo que te aflige
O teu rastro, em breve, será apagado
Para que as novas gerações sejam mais belas e ternas
Menos hipócrita, sujismunda, atávica e apática
Como as guardas, os punhos, os corações e as lanças
Dessa tacanha representação da realidade humana
Bernardo Almeida
Ditadura do relógio
Correr não é andar mais rápido
Mas sim um pedido de enfarto
Aos quinze minutos do primeiro tempo da vida
Perfume
Escuto seu perfume a me chamar
Manhã e noite ele me diz querer mais
Borrifo novas gotas de mim em você
E seus olhos brilham, a sua pele resplandece
Permaneço ao seu dispor, à sua vontade
Sabes que de mim tens os possíveis mais impossíveis
Acaricia-me devagar, apenas para fazer-me lembrar seu nome
Abraçado em seu gosto, seu rosto, seu corpo
Sê a viga que sustenta a minha vida
E me poupa das próximas perguntas, tão dispensáveis
Traz no meu pedido a sua resposta
Põe o seu mais belo vestido e aceita o meu cheiro em ti mais uma vez
Pagão
Livro-me dos meus pecados cometendo outros
Novos, picantes e furtivamente lascivos
Sinceros, profundos e deliciosamente proibidos
Livro-me dos meus pecados falando de amor
Sendo condenado pelos olhares que nada me dizem
A não ser que são infelizes e por isso julgam demais
Livro-me dos meus pecados profanando a dureza da razão
Contestando-a diante de sentimentos que desestruturam
Qualquer lei ou idéia aceita como verdade universal
Livro-me dos meus pecados sem fazer esforços
E tomo como minhas as palavras do poeta que afirmava
Não conhecer pecados, apenas prazeres
Bernardo Almeida
Dez encontros
Nossos encontros renderam-me quinze poesias
Mas isso é tudo, preciso ir-me sem titubear
Se queres que suma, assim o farei
Pude escolher entre dizer adeus por bem ou por mal
Entre sair amando triste ou com raiva
Chorando de ódio ou de alegria
Vi o amor começar a surgir em seu olhar
Nem tinha pedido, nem tinha forçado
Percebi seu esforço inútil para tentar controlá-lo
Então a noite chegou, não para nos acolher
E as estrelas atestaram muito bem suas palavras
Nem motivos, nem nada, apenas “Não quero mais ver-te”
Fui julgado, injustamente visto como culpado
Minhas emoções foram menosprezadas
Ao rastejar, perdi a última coisa que me sobrava
Volta e meia, penso em escrever-te algo
Sei que nunca estarei completamente curado
Do infortúnio do esquecimento, duro fardo da separação
Perseguirei sem fim o seu cheiro
Em qualquer mecha loira que cruzar-me a vista
Tornar-me-ei um ser mesquinho, não oferecerei além do mínimo
E quando, ao acaso, acreditar sentir a sua presença
Ainda que não faça mais diferença
Estou certo de que passarei uma semana sem dormir
A vida, então, não valerá a pena
Até que a sua voz serena volte a massagear-me
Fazendo ecoar notas sublimes em musicalidade e amor
Bernardo Almeida
Incógnita
O que tenta dizer-me esse olhar
Profundamente misterioso
Que se esconde por detrás
Dessa placa de gelo e vidro
Talvez diga que me ama
Mas poderia também zombar
Dos meus elogios óbvios
Da minha solicitude exagerada
Quero dar o que te falta
Mas, afinal, o que te falta?
Seus olhos saltam de espanto
Escondem respostas e choram
Quem dera tivesse eu desenvolvido
Os dons espirituais da mediunidade
Atravessaria seus pensamentos
E, em meio ao veneno, encontraria o antídoto
Mas tudo o que me cabe
É sentar ao seu lado
E partilhar o silêncio cúmplice
Da incógnita dos seus sentimentos
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
O resto
Dias tristes
Seguem-se um após o outro
Noites chuvosas e manhãs secas
No bar, deposito as minhas incertezas amorosas
Atrás de ti, não me reconheço
Ao seu lado sou completo
Mas meus versos não rimam com o seu nome
Sou andarilho, sou permissivo
Vejo seu corpo e cobiço-o
Mesmo que finja não enxergar-me
Em punho, outro poema
Para cantar a desilusão
Os desencontros e as armadilhas
Em princípio, sou o fim
E coloco-me a sua disposição
Sempre alheio aos acontecimentos
Bata em minha face
Derrame sobre mim a mais fria água
E desperte-me deste sonho inoportuno
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
Sem destino
O vento é frio e a noite tão acolhedora
Solitária e nublada como minha sorte
Leste, oeste, sul e norte
Uma bússola quebrada, desvairada
Aponta para o nada e diz tudo
Envia-me ao caminho menos oportuno
Como um beijo derradeiro inalcançado
Ou a cartada que precede a derrota
Fora de contato, escondo segredos
Que anuncio apenas à minha sombra
E nem mesmo dela guardo confiança
Quantas vezes não me traiu com certezas dúbias?
Serei o penúltimo cavalheiro
Aquele que leva as flores
Mas nunca termina com a dama
Estou fadado às despedidas e prêmios de consolação
Serei então os restos do perdão
Os ossos por trás de qualquer beleza
A segunda-feira, a ressaca, as súplicas
A humilhação, a tristeza, o medo de perder-te
Mas diziam que o amor eleva?
Conheci do paraíso às trevas
E resido na instabilidade sem prescrição
Tão perigosa quanto a própria vida
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
Vira folha
Se soubesses da minha dor
Falarias de forma suave
Sua voz aguda é uma gafe
Permita-me dizer
Que não mereço tal desprazer
Mesmo assim ainda desejo você
Olhe-me de frente
Estou lhe pedindo perdão
Mas que erro cometi?
Estou me humilhando
Matando sem dó o orgulho
Residente neste ser vaidoso
Coloque-se no meu lugar
E deixe os velhos pecados para trás
Vivo em busca de femininos lábios, prazer voraz
Penteie os fios do ciúme tecidos em lã
E não mais traga a sua irmã
Senão desse amor outra vez me apoderarei
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
Inadequado
Eu não nasci para essa vida banal
Uma rotina e um emprego convencional
Isso me soa marasmo
Faz tudo que é belo
Se tornar igual e chato
Nada é mais estático
Do que esse pobre padrão
Que cria a cada dia um novo lunático
Ou um perigoso ladrão
Sou volátil como o álcool que bebo
Sou daqui e dali
Posso querer ser o mar
E, em segundos, desistir
Sou da vida
Sou da natureza
Sou sem pudor
Sou no frio, o calor
Sou do amor
Sou do amor
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
Palavra
Uma palavra pode ser proferida
E esquecida com o tempo
Outra pode ser aquecida e sentida
Além da eternidade
Uma palavra pode ser mantida
Pode ser vencida
Pode ser transformada
Pode ser omitida
Pode ser deturpada
Pode ser lembrada
Uma palavra
Afasta o homem da ignorância
Aponta a saída do labirinto
Fantasiosa ou realista
Carrega vida em seu sentido
Uma palavra
Quando lançada
Não tem rumo
Não tem caminho certo
Trilha ao impulso do vento
E na velocidade do pensamento
Segue firme, vaga e veloz
Como uma flecha
Pode destronar uma certeza
E como uma chama
Pode transformar corações em brasa
Uma palavra
Simples e inútil
Pode mudar o mundo
Pode ultrapassar uma crença
Pode desatar nós e preconceitos
Pode vencer uma guerra
Aquela mesma palavra
Esquecida em meio a tantas outras
Na página amarelada de um livro qualquer
Pode ser a salvação
Ou a perdição
Na vida de alguém
Uma simples e imperfeita
Palavra
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
Mutação
Passei tantos anos sob o olhar infecundo da luz
Que comecei a acreditar não haver forma, distinção e equilíbrio na escuridão
Porém, em poucos e insensatos minutos, as aparências fáceis se transformam
Em delineamentos perfeitamente disformes, depurados e apurados
À mostra está unicamente a máscara da perfeição
Estúpida, monstruosa, egocêntrica e ilusoriamente independente
Não consegue sequer transpor a barreira das aparências
E desenvolver uma percepção transmutada, aguçada e expandida
Focalizo o espaço em que me encontro, extraído de mim mesmo
Cem vezes mais vasto, absurdamente amplo e copioso
Redimensiono as minhas perspectivas para chegar perto daquilo que busco
E ganho nova alma para compreender o que está sempre além
Inusitadamente a obviedade torna-se um insulto insuportável
Fugindo das similitudes, não sinto-me atraído por qualquer oposto
Agora nada pode guiar-me senão a voz da intuição
Desvendado pela lupa do auto-conhecimento, tornei-me eu mesmo
Indefinível, inimitável, irreproduzível, insondável e ambíguo
Um vulto cintilante na claridade sombria
Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)
Institucionalizado
Vitimado, constrangido, monitorado
Humilhado, oprimido, controlado
Vigiado, atacado, manipulado
Seduzido, induzido, conduzido
Enganado, traído, castrado
Encarcerado, silenciado, evitado
Doente, rejeitado, humilhado
Discriminado, violentado, trapaceado
Abocanhado, acorrentado, apanhado
Sufocado, apaziguado, maltratado
Rotulado, legislado, cadastrado
Corroído, descaracterizado, padronizado
Registrado, aprisionado, formulado
Inanimado, abatido, indolente
Indiferente, esquecido, carente
Apático, acomodado, conformado, inconsciente
Bernardo Almeida