Bernardo Almeida
Carne, osso e memórias
Diluiu em pecados
O que um dia foi santo
Sacrificado o eterno em prol do agora
Mundano e estreito
Externo e profano
Corpo exposto
Alma fraca
Lágrimas e silêncios
Novos prantos
Gritos de sinceridade
Uma história mal contada
Difícil de decifrar
Um passado de fugas
Um presente omisso
Você não se reconhece
Nem que apodreça em frente ao espelho
Admire suas falhas
Bem de perto, profundamente
Você ainda consegue se questionar sem se sentir vazio?
Anos luz separam você de você mesmo
E não há nada além disso
Carne, osso e memórias
Perda
As lâminas da paixão
Fatiaram o meu coração
Que sangra e pára
Não bate, não vibra, não late
Assumirei os suspiros
Os erros e os acertos
Assumirei meus rumos
Os corretos e os falsos
As mudanças em minha mão
Ela leu, mentiu e descumpriu a missão
As promessas desse verão
Foram todas abandonadas no porão
Vítima sem súplicas e sem deslizes
Primários sentimentos e algumas cicatrizes
Uma vez ferido, sempre em fuga
Uma vez pecador, sempre culpa
Mais temido do que desejado
Mais esquecido do que lembrado
Naquele dia em que te conheci
Olhei para os lados e nunca mais te vi
Bernardo Almeida
Fruto apodrecido
A maturidade é cômica
Uma piada mal contada
Estranhamente sem graça
Corrupta e absurda
A maturidade é uma armadilha
Quando passa do ponto
Põe um rei em cada barriga
E atira pedra em cada diferença
A maturidade dá frutos podres
Transmite o vírus da hipocrisia
Que limita a visão propositadamente
Para criticar imprudentemente
A maturidade sentir não consegue
Seu próprio cheiro
Que a nada agrada
Além do seu próprio nariz
A maturidade tem o seu caminho
Que julga único e correto
De horizonte estreito e anacrônico
Que a tudo desdenha em tom irônico
Mas não confunda a maturidade
Com a sua prima sapiência
Que não vira as costas para o seu oposto
Nem se incomoda diante da diferença
Não confunda a sabedoria
Com a unilateral maturidade
Que tudo sabe para si
Em sinônimo de perniciosa vaidade
Bernardo Almeida
Deveras, homem!
Ah, como difícil é ser um homem
Em um mundo tão machista e feminista
Ah, como é difícil sorrir sem ser julgado
Como é difícil chorar sem ser censurado
Ah, como difícil é ser um homem
Em um mundo tão feminino e masculino
Onde os contrários se igualam
E as verdades se anulam
Ah, como é difícil
E você nem sabe do meu esforço
Você nem quer saber
Como é difícil sobreviver entre seus preconceitos de homem
Como é difícil não padecer aos seus padrões tão femininos
Como difícil é ser um macho
Daqueles com M maiúsculo
Que chora, ama e pede colo
Bernardo Almeida
Crença e aparência
Quem crê no amor e nunca chorou
Dificilmente amou
Quem crê no amor e nunca sofreu
Dificilmente amou
Quem crê no amor e nunca perdoou
Dificilmente amou
Mas quem ainda crê no amor?
O amor foi reduzido a desejo
Passageiro, ligeiro
Um sem número de parceiros
Companheirismo é piegas
Amar alguém é tão brega
A sinceridade está de braços cruzados
A cumplicidade tirou férias
E o compromisso se aposentou
Mas quem ainda crê no amor?
Livre de interesses materiais
Repleto de saudades e lembranças
Os corações estão trancados
Protegidos contra danos
Todo mundo é tão sério e prudente
Falta coragem para amar
É mais fácil possuir do que se entregar
Mas quem ainda crê no amor romântico?
O que era sentimento verdadeiro
Não passa hoje de um jogo entre parceiros
A morte já não separa os casais
O amor morre muito antes
O vinho é transformado em água
Sem sabor, gosto ou cheiro
Sem emoções e sem feições
Quem veio ao mundo e nunca amou
Falar sobre a vida não pode
Porque nada sabe
Porque nada aprendeu além de futilidades
Porque nada sentiu além do trivial
Porque nada entendeu além do óbvio
Porque, ainda que vivo, nunca viveu
A chuva e o absurdo
E eu que sou tão pobre, fraco e envergonhado
Sou aquele que tem medo do espelho
Mas nunca admite
E eu que sou tão baixo e retrógrado
Tão louco, difuso e passional
Se fosses minha, saberia...
Eu sou o absurdo mais inconcebível da humanidade
Sou cinzas e tristezas
Sou frustrações e decepções
Sou noites em claro
Sou a ferida que não cura
Sou aquele que ama calado
Sou a décima xícara de café
E eu que sou tão parvo
Que choro escondido e peço segredo
Que sofro as decepções da humanidade
Ainda que tente firme esquivar-me
E eu que sou tão medonho
Em meio a este sonho insólito e enfadonho
Que durmo de luzes acesas
Não quero ser a sombra de ninguém
Mas como viverei daqui adiante?
A sobrevivência guarda para mim o fracasso?
Não quero saber o que me reservam os dias
Por meio tempo sou a vida que nunca quis
Sou o ano mais longo
A aventura menos fantástica
O livro mais chato
A solidão e o infortúnio de um canto de parede
Sujo e mal iluminado
E eu que me encontro neste dia de chuva
Cubro meu corpo nu
Enquanto escuto calmo a chuva cair
Bernardo Almeida
Amor perdido
O amor não fez sentido
Nesse mundo mesquinho e sem graça
Talvez porque seja ele a presa e não o predador
Não vale um latão
O amor está fora de moda
Quase ninguém o veste mais
O amor não é incentivado
E quem ama vive a ser crucificado
Quem ama é taxado de besta, otário
Sofredor, masoquista, palhaço
Muito mais fácil é não envolver-se
Usar maquiagens para disfarçar-se
O amor que falta no mundo
Sobra em mim, sobrecarga
Mas o que isso importa
Se não encontro outros corações para reparti-lo?
O amor está velho, impotente
Está cansado e carente
O amor sente falta dos encontros
Do descompromisso nunca omisso e dos sonhos a dois
O amor sente falta do romantismo
O amor sente falta da paixão
O amor sente falta da saudade
O amor sente falta da falta que ele faz
O amor anda sozinho e chuta latas
Frequenta diariamente os becos escuros e as ruas sem saída
Esconde a sua esperança no bolso
E transita sem chamar atenção
O amor embriaga-se para esquecer a rejeição
O amor não chora para mostrar que ainda é forte
O amor está rouco e evita expressar-se
O amor está louco, a ponto de suicidar-se
Bernardo Almeida
Cuspe
Cuspo sim
Sete vezes no prato em que comi
Importa-me apenas o alimento
Da próxima vez, comerei de mão
E não dar-te-ei o prazer de humilhar-me
A sua caridade foi desmascarada
Subitamente, um olhar malicioso se forma
Sobrancelhas capciosas
Usastes da minha fraqueza para se fortalecer
Mas em seu nutriente egoísta
Encontrarás o veneno que te espera
E sentirás a dor, mesmo que inconsciente
Como uma peste sem cura
Esta é a minha praga
Por sete gerações
E não verás a luz
Mesmo que enxergue
E sentirás a cruz
Não terás alegrias
Mesmo que insistas em sorrir
E não encontrarás a felicidade
Não terás conhecimento
Mesmo que tenhas informação
Serás um eterno ignorante
Não se sentirás acompanhado
Mesmo que cercado de centenas de pessoas
Serás a solidão e o esquecimento
Desejo-te agora boa sorte
E cuspo mais sete vezes no prato em que comi
Para que mantenha o mesmo nojo
E não volte a repetir este maldito erro
Devassa
Devassa e carinhosa
Será esse o motivo pelo qual amo-te tanto?
Se para uns causas espanto, para mim, este é o seu encanto
Meus valores definharam
Mas em que eram baseados?
Para te ter, esqueço o que é certo e faço tudo errado
Sua boca sabe por onde descer
Sua língua bem sabe o que fazer
Corpo em chamas, tem doutorado em prazer
Seu ser exala a paixão pelo que é
E, sendo, mantém a fórmula em segredo
Para não vulgarizar-se
A luz que sai de ti
É sábia e profana, rica e artística
Preenche o meu vazio
Do amor és o verdadeiro caminho
E quem carrega coragem para trilhá-lo
Mesmo sob olhares de reprovação
Não se arrepende, nem conhece tristezas
É
Vontade é não morrer
Desejo é amar
Pressa é não chegar
Preguiça é trabalhar
Tempo é inovar
Trilha é desviar
Velho é reciclar
Vento é navegar
Conhecer é renascer
Partilhar é cooperar
Amizade é confiar
Surpresa é desafiar
Sono é sonhar
Acordar é realizar
Tentar é persistir
Conseguir é acreditar
Bernardo Almeida
Perdedor
Eu perdi
E perco quase sempre
Por opção
Mas o fracasso traz um gosto
Ao qual me familiarizo facilmente
A perda é ridícula perto da lição
Do erro faço novas escolhas
E das escolhas, encontro novas opções
Toda correção exige tempo
Não tenho pressa
A persistência é o aprendizado
O aperfeiçoamento é constante
Sem desanimar
Vejo o quanto tudo é fútil
Sutilmente apressado e finito, solitário
Bernardo Almeida
Falibilidade
Senta só este pobre
Ainda sonha, ilude-se
Vive desta crença e melhora
Um coitado aos olhos elitistas
Um forte, um bravo
Vigoroso em seus ideais
O soco contra a covardia
O arroto diante da boa educação
A revolta, a espontaneidade, a graça
Um papel, só um bilhete
Anunciando o próximo encontro
Já não será tão breve
Está de pé, ainda
Inabalado e coerente
O tal quebra-correntes
Corre a todo o tempo
Do tempo que lhe foi imposto
E não desiste
Queimando panos e papéis
Jamais se curva, jamais entoa hinos
E à autoridade oferece seu repúdio
Andarilho livre
Que se nega a aceitar presentes, suborno
E bebe da fonte, não do copo
Vejam, estão limpos
Mas fazem questão em rolar na lama
Gostam de emporcalhar-se
Espíritos asfaltados
Nu e cru, vasto e fértil
Um dia falecerão todos de fome
A ganância de uns
A ambição de outros
E a morte da maioria
Em resposta, a disposição em dizer não
Bater sem as mãos
E ainda assim agredir
Ferir, desagradar e continuar a sorrir
Violar, destruir, destronar
Para distribuir felicidade entre os injustiçados
Bernardo Almeida
Imundo
Mundo vil
Cheio de seres não menos desprezíveis
Sob o comando do Imperador Egoísmo
Estão todos os condenados à existência
Mundo degradante
Extremamente frustrante é ver
As desigualdades tão frequentes
Na mão de quem pede e no bolso de quem paga
Mundo fétido
Corrompido pela ambição e pela disputa
Onde cresce a violência e o ódio
E a vida bela e pura pede para perder a inocência
Mundo catastrófico
Em que a vingança anda solta pelas ruas
E tudo é permitido desde que seja comercializável
Financeiramente multiplicável, rentável
Mundo decadente
Espera teu futuro um tanto óbvio
Da abundância à precariedade
Da vida à extinção da humanidade
Bernardo Almeida
Adeus
Minha inspiração
Deita morta a sete palmos do chão
Junta aos vermes que aceleram minha decomposição
O corpo, um dia célebre
Agora fede, apodrece
Não fala, não pensa, perece
Sirvo-me da companhia das criaturas subterrâneas
Que sobrevivem da fatalidade alheia
Tal qual o invejoso, de caráter desfalcado
Funesta realidade, triste sinceridade
Guarda a conclusão angustiante de um ciclo
Que se basta sem desejar mais tempo
Bernardo Almeida
Recolher
Sonhar tornou-se pecado
Deita-te sob a lama que se forma
E conforma, resignação que me traz ânsia
Enojo-me dos seus beijos
Seu hálito é fétido
Diz-me que a vida é assim
Não quero entender seus propósitos
Você não tem alma
E ainda resta-me o direito de manter a minha
Abaixo da terra, sua dignidade
Acima dela, suas futilidades
Faço parte daquilo que foges
Imagens de pedaços de nada
Que juntas sem porquê
No entanto, continuas a recolher
Papéis aos montes
Como um catador de lixo
Abutre mórbido
Comes a carniça
E a vida que conhece e prova
Vem da morte alheia
Seu corpo está deformado
E ainda consegues sentir-se belo
A soberba é a bala que carregas na testa
Bernardo Almeida (Livro Achados e Perdidos)
O veneno da saudade
Perdoei a ti sem que me pedisses
Porque não consigo guardá-la como um espinho em meu bolso
E se digo que suporto a dor que me causaste
É porque de ti, apenas a presença bastaria
Sento e rememoro os encontros às escondidas
Das manhãs às tardes, e, das noites às madrugadas
Como éramos imaturamente descuidados e felizes
No entanto, jamais fomos pegos em flagrante
Eis a invejável sorte dos ardorosos amantes
Minhas mãos sutilmente vacilantes em seu corpo
Suas pernas a cambalear a cada toque
Minha voz a embargar após atender aos seus pedidos mais carnais
Éramos um espasmo lunar
O que seria de mim sem aqueles saudosos dias
Em que o fulgor do amor, ainda jovial, falava mais alto?
O que seria do vento não fossem seus cabelos para bagunçar
E o seu perfume a espalhar e distribuir graça ao mundo?
Portanto digo, com carinho: perdôo-te sem que me peças
Porque de ti, quero apenas guardar a ternura e a beleza
Dos momentos brevemente eternos que dividimos um dia
Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)
Deuses e demônios
A mentira faz dos homens homo sapiens
Os demônios são todos assim
Tenho conversado com dezenas deles
Porém, os deuses aspiram a perfeição
Ambos falham e mentem em formas
E em conjecturas arrogantemente expostas
Mas subdividem-se em bem e mal
Sois o que podeis captar da natureza
Exércitos são formados em nome do ódio
Mas no amor de um Cristo qualquer, velho e ultrapassado
Encontram a sua justificativa para matar e oprimir
São todos servos de uma estupidez esquálida
De um sinal que não deveria ser dado
E de divindades mortas, mas logo ressuscitadas
Nos túmulos do fanatismo catártico das religiões
Bernardo Almeida (Crimes Noturnos)
Desapego real
Vejo do alto do sublime castelo do perdão
Rainhas e reis deitados com a face virada para o chão
Admitem e arrependem-se dos seus erros
E pedem que suas cabeças sejam cortadas com rapidez e zelo
Mas não precisa desta atitude radical
Chega de sangue derramado em nossos quintais
As sobrancelhas franzem-se todos os dias
Porque entre homens violentos e selvagens
Faz-se presente diariamente a covardia
Apenas levem em seus corações a lição
Larguem todo o ouro e a prata no chão
As vestes e os reinos, coletivize-os agora
E liberte-se da praga miserável do apego
Bernardo Almeida (Livro Crimes Noturnos)
Molho requentado
Um brinde à morte
Esta idônea rapariga
Que de tão especial que é
Restringe-se a aparecer
Uma única vez em cada e toda vida