Antonio Carlos Secchin

Encontrados 11 pensamentos de Antonio Carlos Secchin

Cinzas

Talvez o verão tenha queimado os frutos.
As mãos, ressequidas, apenas recolhem restos.
Cinzas, ardores, ossos.
Havia ali,
não se lembra?,
um rumor de desejo,
que nenhuma palavra salva:
todo poema é póstumo.
Botei a boca no mundo,
não gostei do sabor. Ostras e versos
se retraem
ao toque ácido das coisas tardias.
Na sombra insone do meu quarto,
o vazio vigia, na espreita do que não há:
por aqui passaram
pássaros que não pousaram. Fui traído
por ciganas, arlequins e cataclismos.
De nada me valeram
guardar relâmpagos no bolso,
agarrar nas águas as garrafas náufragas.

Linha de fundo

Assim meio jogado pra escanteio,
volto ao poema, este local do crime.
Mas é o desprezo que melhor exprime
aquilo que no verso eu trapaceio.
Se pouco do que digo me redime,
cópia pirata de um desejo alheio,
revelo a ti, leitor, o que eu anseio:
um abutre no cadáver do sublime.
A matéria é talvez muito indigesta,
me obriga a convocar um mutirão
para acabar com toda aquela festa
de pétalas e plumas de plantão.
Memória derrubada pelo vento,
quero aqui só lembrar o esquecimento.

Autorretrato

A Flávia Ampan

Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é que lhe invade,
numa voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom senso lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina.
Sabe que nasce do escuro
a poesia que o ilumina.

RECEITA DE POEMA

Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno.

"DE CHUMBO ERAM SOMENTE DEZ SOLDADOS"
A José Maurício Gomes de Almeida

De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento,
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhas, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume do meu poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.

Linguagens

Notei que o vôo negro da hipálage
não tinha o mel dos lábios da metáfora,
e mais notara, se não fora a enálage,
e mais voara, se não fosse a anáfora.

Chorei dois oceanos de hipérbole,
duas velas cortaram a metonímia.
O pé da catacrese já marchava
no compasso toante dessa rima.

Verteu prantos a anímica floresta,
mas entramos dentro do pleonasmo,
‘stamos em pleno oceano da aférese...

Vai-se um expletivo, outro e outro mais...
Os poetas somos muito silépticos;
os poemas, elípticos demais.

"Estou ali..."

Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o barulho das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil

contra o escuro da noite que nos trai.
Das mãos dele eu recolho o que me resta.
Chamo-lhe de menino. E é meu pai.

Concorde com Freud

Matou o analista e foi a Miami.
Na fuga, levou a reboque
a série inglesa de Hitchcock.

Damas ocultas em jardim sem medo
se ofereciam em zoom
para levá-lo a lugar nenhum.

Comparado a seu rosto, dir-se-ia negro
qualquer giz; tal qual surge, intenso,
um osso, no raio-x.

Indagado na fila do passaporte,
declarou que só trazia
na mala a morte.

A tudo respondeu solene e quieto
com minúcias tediosas
de um hemograma completo.

Da mãe herdara um trono abandonado,
escondido numa esquina da infância
e no calibre três-oitão recuperado.

Queria entrar no Reino da Fantasia,
saudar Minnie, Pateta, Alice e a Madrasta,
e com o mel do amor e o mal da teimosia

suplicou à polícia a dádiva de um dia.
Voltou algemado, em classe econômica,
sendo também proibido

de ligar até um fone de ouvido.
Desejou marcar nova sessão,
mas no Paraíso não se dá plantão.

Caju, Catumbi, João Batista,
num deles mora hoje o analista.
Órfão pela terceira vez,

passa o dia jogando damas
na cela do xadrez. Viver, agora,
quando tantos dissecaram sua história,

lhe parece bem mais fácil:
ele, sem qualquer ajuda,
conseguiu escrever o posfácio.

Arte

Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem depois no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de vôos amarrados ao chão.
Cinza do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal pegando fogo
pelo berro do espantalho.

Ao ver o não que sai da dor
O som da voz já vai no sim
No tom do céu não vi mais luz
Do que no sol que há em mim...

⁠a poesia é uma hóspede invisível. (...) o vestígio de sua passagem é o poema.