André Díspore Cancian
'...a poesia é tão bela porque parece vir como uma ponte que comunica algo indescritível. Veja só como a ilusão nos leva pelo nariz a acreditar em asneiras somente porque poetas sabem fazer truques gramaticais tão bem quanto um mágico tira pombos do bolso. Então não se dê o trabalho de esconder o que há em seu coração; ninguém vai descobrir, nem se você quisesse.
[communication breakdown e a poesia]
Sentido
Não há mistério em existir
Nem em viver ou sonhar
Caminhar se faz por si
Sem erros nem acertos
No acaso de cada passo
Mas quanto do insondável
Abraça a alma se desanda
[e olvida
E em seguida se procura
[por sentido
E naquilo que encontra
Quanto mais do impossível
Então se abriga nesta miopia
Preso na teia do sentido
Naquilo que mente do início
No que deveria ter esquecido
[de ter inventado
Noutro infeliz descuido
[de otimismo
Agora me refugio
Olhando tudo ao lado
Acima e abaixo
E repetindo
Fui vivo
Fui assim
Eu lembro
Que esqueço
E me perco
De novo a caminhar
À frente sem rumo
Olhando para trás
Vivendo a cãibra
De sempre se retorcer
E nunca se encontrar
Em qualquer direção
Em qualquer tempo
Ou na posição
De descansar
Do engano
De buscar
Algum alento
No desespero
Da mesma história
De quem deu um passo
[certo
E não pode apagá-lo
E não vê mais sentido
Em continuar em círculos
A fugir do próprio vácuo
Procuro alguma outra quimera
Pouco menos mesquinha
Somente algo pequeno
Que caiba no dia-a-dia
De uma vida abortada
Que perdeu os passos
[e a paciência
Enquanto contava
Os dias e as horas
De uma morte atrasada
Algo que já tenha desistido
De um caminho novo
Algo já cansado
[vencido
Por si mesmo
Destemido
Do erro
Procuro e encontro
Outro atalho para onde vivo
[perdido
Entre certezas e restos
E a minha solidão
E o meu abrigo
Que não é lar
Nem meu amigo
Mas sabe calar
Quando todo som
[é ruído
E todo sonho é ruína
E por hora só isso basta
E por hora nada peço da vida
Só por saber que acaba tão cega
[como se inicia
Passagem
Despeço-me do sonho de viver
Do delírio de um dia conseguir
De uma vez apenas ter as mãos
E o coração onde quero e como
Sem desviar disso como perda
Do tempo que perco sem pesar
Não, não acredito mais em mim
Nem no que invento para dar-me
Uma segunda, outra chance
De provar o contrário
Do que sempre foi
A minha vida
Se abrigo algo com afeto
É porque já está morto
Porque aprendi o traquejo
De não me abraçar ao que muda
E não pensar-me preciso quando sou
[meio
Minha saudade é sempre mais amável
Minha memória diz mentiras perfeitas
Que nenhuma realidade desmonta
Em um punhado de palavras e outro
[de vulgaridades
Mesquinhas em entrelinhas
Que me fazem sentir a vida
Como se sente uma pedra
[no sapato
De quem precisa correr atrás
Correr, com passadas medidas
Correr, sem ter qualquer meta
E chamar a coleção de feridas
De história da sua vida
História de um idiota
Certezas de uma besta
Percurso de um imbecil
Objetivos de um estúpido
Me trouxeram até aqui
Foi a história de um erro
Levado até os últimos fôlegos
[do engano
E cuja hora já passou
Agora, resto assim
A sujeira e os cacos
De um sonho perdido
Da amizade com o erro
Do sofrer sem o orgulho
Da luta para ser infeliz
Da solidão de um palhaço
Esforçado em levar-se a sério
Agora
Esforço-me para ver-me passar
E somente passar em branco
[ao negro