Ana Filomena Amaral
É um peso leve mãe que eu gosto de carregar, para ti também,
para que quando nada mais existir, tu a faças reviver com a
imortalidade do teu amor. Impregnarás estas paredes com o calor
da tua ternura e as janelas serão os teus olhos sempre abertos para
mim e, quando nada mais houver, será o teu regaço, esta casa
onde eu pousarei a minha cabeça e viajarei ao interior de ti, donde
não mais regressarei. Será o teu colo, esta sorte!
Mãe Nossa que estás em tudo e em todo o lado, preservado seja o teu nome e o teu corpo por todos nós, venha a nós a tua generosidade e sabedoria, seja feita a tua vontade sobre a nossa, assim na Terra como no Universo, e que o pão e a água nunca nos faltem, por nossa culpa. Perdoa o nosso desrespeito, incúria e ganância, assim como nós nos perdoamos por te termos ofendido, e não nos deixes cair na extinção e livra-nos do fim.
“Ser humano é ser imortal, estar para além da dúvida e da certeza, transcender o material e incorporar a essência do amor que no devir encerra a origem, a matriz, o ser primordial.”
O quarto é o ninho das metamorfoses do corpo e da alma. Ele nos veste e despe, nos encarcera e liberta, nos ilumina e entreva, nos restitui à vida e nos deixa morrer, lançando-nos na última viagem dentro dos seus confins.
A minha casa seria a casa da luz, fechada sobre si, mas transparente de mim para o mundo, de horizontes vastos, libertos, iluminados. Uma casa no limiar do infinito, a caminho dum fim que se quer retrocesso.
Sou mulher na eminência dum dogma, fugindo aos triângulos de transparência, vagabundeando, num vagatio e errância, subtraindo-me à custódia do consciente das regras, das normas e dos preconceitos.
Manifesto no dia do repouso, a vontade de erguer uma nova narrativa, pedra sobre pedra, dia a dia, sorte a sorte. A nova casa do texto, da palavra sentida e pensada na pluralidade da sua significância, dos seus sentidos de ser nos sentidos da Humanidade, a realização plena do sensualismo.
Reclamo no dia do repouso, o direito de criar um novo sentido, aquele que viverá de todos os outros e que constituirá, na sua abrangência, o anel de fogo das sensações em expansão, aquele que afastará todas as distâncias e todos os espelhos, rumo à porta da razão e, lance a lance, subirá os degraus até à origem.
Exijo no dia do repouso, a liberdade de assumir a diferença, numa indiferença por todos os que teimam em negar-ma, na diferença sou, não o invólucro, a aparência, mas a essência da criação, pois em mim se constroem, num plasma permanente, os futuros de passados e presentes olvidados.
Acuso no dia do repouso, todos os que me roubaram a força, a beleza, a vida, condenando-me a uma procriação imposta para o bem comum, como se esse dever fosse só meu, possuidora da matriz que me definiu o género e me impediu a definição de ser, mais do que tudo, imortal na minha humanidade.
Julgo no dia do repouso, o pensamento de dois milénios, o sentimento de dois milénios que, primeiro ignorou-me, depois seguiu-me, a seguir endeusou-me, no quarto dia queimou-me, e nos outros eternizou-me, descriminou-me e, finalmente, esterilizou-me. Ficou-me apenas a alma, essa que dizem ser imortal, num corpo despedaçado pela dor e pelas lágrimas de dois milénios que, refeito e assumido, se prepara para uma entrada gloriosa na casa do terceiro.
Condeno no dia do repouso, todos os arguidos a um milénio de descanso, pois quem tanta história reclama ter feito bem o merece.