Almeida Garret
De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto.
Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazeis caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar a miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? — Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas(5) que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.
Logo a nação mais feliz, não é a mais rica. Logo o princípio utilitário não é a mamona da injustiça e da reprovação. Logo...
There are more things in heaven and earth, Horatio.
Than are dreamt of in your phylosophy(6)
A ciência deste século é uma grandessíssima tola.
E, como tal. presunçosa e cheia de orgulho dos néscios.
Aí paramos, e acordei eu.
Sou sujeito a estas distrações, a este sonhar acordado. Que lhe hei de eu fazer? Andando, escrevendo: sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo.
Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião vou te explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. Já não me importa guardar segredo; depois desta desgraça não me importa já nada. Saberás pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo na natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo um tato!...
Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas.
Um pai.
Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos.
Um criado velho.
Um monstro, encarregado de fazer as maldades.
Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios.
E contudo, desde a idade da inocência em que tanto me divertiam aquelas batalhas, aquelas aventuras, aquelas histórias de amores, aquelas cenas todas, tão naturais, tão bem pintadas — até esta fatal idade da experiência, idade prosaica em que as mais belas criações do espírito parecem macaquices diante das realidades do mundo, e os nobres movimentos do coração quimeras de entusiastas, até esta idade de saudades do passado e esperanças no futuro.
Que delícia um sorvete com este calor! — é seguramente, é dos prazeres maiores desse mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existência que vale dez anos de ser rei em qualquer outra parte do mundo.
Há livros, e conheço muitos, que não deviam ter título, nem o título é nada neles.
E há títulos também que não deviam ter livro, porque nenhum livro é possível escrever que os desempenhe como eles merecem.
O coração humano é como o estômago humano, não pode estar vazio, precisa de alimento sempre: são e generoso só as afeições lho podem dar; o ódio, a inveja e toda a outra paixão má é estímulo que só irrita mas não sustenta.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.
Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida no entretanto: sentir é viver ativamente, cansa-a e consome-a,Só tenho pena de uma coisa, é de ser tão desastrado com o lápis na mão, porque em dois traços dele te dizia muito mais e melhor do que em tanta palavra que por fim tão pouco diz e tão mal pinta.
O povo, de cuja história ela é o livro, ainda existe; mas esse povo caiu em infância, deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez carapuços com elas.
Não se descreve por outro modo o que esta gente chamada governo, chamada administração fazem.
De tanto não somos capazes nós.
E por isso admiramos tanto.
E perdoamos tanto.
E esquecemos tanto.
Mas amar tanto. não sabemos.
Amamos melhor; sim, isso sim
Tanto não.
- Desgraça grande ter um coração assim; mas não me digam que é prova de o não ter. Eu digo que ele tinha coração de mais: o que é um defeito e grande, é um estado patológico anormal. Fisicamente produz a morte; e moralmente pode matar também o sentimento. Bem o creio: mas é moléstia comum, e com que vai vivendo muita gente. Esse é o defeito de Carlos...
— Sentir muito?
Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, e a mulher que se ama.
O que produz o amor não se sabe; é tudo isto ás vezes, é mais do que isto, não é nada disto.
Não sei o que é; mas sei que se pode admirar uma mulher sem a desejar, que se pode desejar sem a amar.O amor não está definido, nem o pode ser nunca, O amor verdadeiro; que as outras coisas não são isso.
Menti: o homem não faz outra cousa.
Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz,
e entretanto tenho levado toda a vida a mentir.
Oh! de quê e como é feito o homem, para que e por que vive ele? Que vim eu, que vimos nós todos fazer a este mundo?Tenho espanto e horror de mim mesmo.
A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: E menos ainda pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.