Adriana Sydor

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talvez a minha irresponsável perda de tempo com a escrita esteja a visitar estrelas, altura astronômica. não importa, insisto.
na escrita que aprendi a conversar, ouvir, ver. acho que é por causa dessa narrativa constante que fica se formando na cabeça para explodir em desabafo de letras é que a alma não atrofia e consigo perceber os instantes longe da catarse.

tenho a impressão de que tudo que escorre para o papel é uma espécie de resquício de mim, um resto, vestígio de alguma dor ou alegria que finjo. mas, definitivamente, só finjo aquilo que sinto. talvez as palavras sejam como lágrimas. gotas que não são boas ou ruins, mas que são boas ou ruins. o eterno exercício da comunicação, a tentativa sem fim de dizer o que não é pra ser dito, todas as emoções a pular, se jogando, suicidas, e se espatifando no teclado.

Inserida por Sydor

blim blom
namorar é um jeito de transbordar. é derrubar por cima do copo, por baixo da roupa, por dentro do corpo as práticas do amor.
o namoro tem caprichos, urgências, desejos, eternidades. tem as temperaturas do verão dentro do quarto e os arrepios dos pelos em pico no beijo de despedida.
há mimos, caminhos, nuances, histórias e confissões. os dedos dos últimos românticos se entrelaçam em loucuras.
o namoro conhece todas as peças do jogo. às vezes finge que não é. às vezes finge que é. e sabe que só acontece de verdade em salivas e suores, olhares e juras, futuro e caminho.
namorar é distrair, perder a hora, largar o compromisso e não ter vontade de ir embora. é mais, é o enfeite da vida, é tudo no agora.

Inserida por Sydor

não me importa que a chuva caia lá fora e que eu precise de capa, galochas e cachecol para enfrentar o mundo. o calendário avisa que num instantinho será verão. a notícia me anima.

Inserida por Sydor

o outono está no fim. caíram as folhas, os cabelos, as saias. logo o ar impassível desabará sobre nós e o vento cortante rasgará nossas fibras. as lãs sairão dos armários e os jeans se misturarão a botas, luvas e capas. as gentes esconderão o corpo, às vezes com elegância e dignidade, às vezes com extravagância e agrura.

Inserida por Sydor

de vez em quando meu passado vem me visitar. chega, bate à porta, nem espera resposta e entra. não diz a que veio, mas me revira, chacoalha, joga pro alto e espera que, como gata, eu caia em pé.

Inserida por Sydor

tenho medo do passado. medo que mostre que eu já não sou eu mesma ou, ao contrário, que me revele que eu ainda sou a mesma.

Inserida por Sydor

perpetuum móbile – porque nenhum amor acaba

os amantes se separam, se vão. somem no tempo e no espaço. mas nenhum amor acaba.
os amores sempre continuam e continuam sempre. o amante vai e o amor fica num objeto da sala, no cheiro de um livro, na cor do dia, numa palavra, num sotaque, na fumaça do cigarro – não há lugar em que o amor passado viva mais que na fumaça do cigarro; no primeiro gole, talvez.
a lembrança do amor é o próprio amor. e se ela vive aqui e ali, é só porque o amor também vive.
há mais amor na coleção de não-amor do que em qualquer outro lugar.
o amor do passado, que vive no presente e que talvez se junte a outros ainda, não é do tipo que faz mal, que move montanhas ou que desassossega a alma. ele só está por ali, por aqui, a pairar feito Gasparzinho. a contar um pouquinho sobre a vida que tivemos, lembrança não autorizada da própria biografia.
o amor do passado às vezes provoca curiosidades: uma espiadinha na vida, uma vontade de saber, um relato de episódio, recorte de momentos...
sempre que alguém vai embora, deixa um pouco de si no outro. e esse deixar é o amor que continua sempre e sempre continua e faz parte da gente como todas as outras coisas.
amor é moto-contínuo.

Inserida por Sydor

lagarta e borboleta

vontade de pedir perdão
estender os olhos
até onde meus pecados alcançaram
e curvar-me pelos erros.
sem penitência, só o perdão
puro, simples, humílimo.
perdão para o futuro
espaço em que ainda dançarão
animadas,
sedutoras,
malvistas,
minhas imperfeições
na primeira hora os erros se anunciam
os insisto
deixo-os que pulem
transformem-se em ação
estragos previstos
e os outros.
humana, pobre e fraca, humana.
honesta, abro a cortina das deformidades.
pouco sobra de mim
remanesce figura frágil,
simplória,
quase nada.
meu pior se faz em força
que domo para transformar
e validar a existência.
tarefa difícil
trabalho constante
espelho nos olhos,
defeitos cintilantes
tentativa de metamorfose
lagarta e borboleta.
mas esse meu olhar
e esse meu pesar,
(a besta-fera que vive apesar de)
não redime as culpas.
saber não basta
lutar não é suficiente.
a tortura dos próprios tribunais…
irrelevância, irrelevâncias.
vontade de perdão.
um perdão geral,
um perdão eterno,
um perdão sem muros.
perdão-libertação.
a absolvição fugiu de mim.
ninguém,
nem os mortos nem os feridos,
ninguém me acaba
ou me atormenta.
calmaria é travesseiro.
preciso do outro.
indulto alheio
fragilidade na mobília.
em noites frias,
o inferno é mais quente.

Inserida por Sydor

marido

se você agora puxar do bolso de dentro do paletó
um livrinho com poemas de Bandeira
ou um lenço, fios de linho, bordado com uma letra só
se você me olhar bem fundo e mentir de brincadeira
que sou eu aquela de quem não teme eterno nó...
ou se me pintar, sem rascunho, com cores de nanquim
se bem agora você passear por meus ouvidos
com sussurros, gemidos e declarações sem fim
eu te juro, bem agora, troco teu apelido, te faço marido
e digo sim.

Inserida por Sydor

treino

é a voz do mar que sinto agora
e todo o seu barulho
explode em meu ouvido
como se fosse um tiro
um grito,
um último pedido
o hálito da praia despenca em mim
arromba portas
invade as paredes
quebra vidraças
corre como raio
me prende e me impede
neste quarto onde o mar me habita
me deito e me dispo
espero.

Inserida por Sydor

recomendações

não se machuque, meu amor
não deixe que o mundo te fira
que as curvas te enganem
que a paixão te sufoque

meu amor, acorde
e olhe em volta
aprecie a vista
solte os cintos e se jogue

não sofra, meu amor
largue os pesos
esqueça o passado
deixe que tudo se renove

é na leveza que o amor se faz
na fruição da carne e do espírito
no ar puro da manhã
o que não for assim, revogue

Inserida por Sydor

meus amigos e eu

eu e meus amigos estamos a ficar velhos
temos todos, eles e eu, cabelos brancos
vontades próprias, passado numeroso
e algum problema nos joelhos

os meus amigos e eu aprendemos algumas coisas
e nos entulhamos de fotografias
nós não confiamos mais na memória
mas nos damos ao luxo de decorar poesias

todos nós temos mais passado que futuro
e a morte nos ronda
e a vida nos convida
e resolvemos largar as certezas

eu e meus amigos sentimos saudade
de um corpo durinho
nos orgulhamos das rugas
e não nos faltam truques, disfarces de idade

nós pensamos em contas a pagar
e na realização de sonhos
apagamos algumas histórias
e damos novo contorno às narrativas

os meus amigos e eu conhecemos os limites do corpo
visitamos o doutor, usamos lentes
e agora entendemos que simples exame de sangue
é variação de humor em desespero ou contente

todos nós, todos os dias, enganamos os ponteiros
e pedimos um pouco mais de tempo
inventamos novos planos
e lentamente nos movemos nos tabuleiros

Inserida por Sydor

para apagar no dia seguinte

tenho ideias madrugueiras
chegam como se fossem o último ônibus
me apressam a sair da cama
a largar o sono
a temperar a alma.
batucam em minha cabeça
a força de mil tambores
não me deixam dormir
acendem chama
são meus donos
me tiram a calma.
se cedo e levanto
viro costureira
que tece ponto a ponto
pano que não termina nem começa
coisas de amores, dores, rumores.
ao primeiro raio
tudo se aquieta
e o que era ideia
permanece
o que era insônia
desconto.

Inserida por Sydor

do amor

eu falo de amor em outra língua
as vezes ocupo olhos para ouvir
uso as mãos,
sei pelo cheiro
e declaro na canção

eu trato do amor no avesso
no inverso, no contrário
o oposto
que é meu reverso
a imperfeição de mim
no descompasso, converso

eu caminho pelo amor
como quem anda
ou quem corre
melhor, quem para
e no beijo morre

eu sei do amor na boca
e no corpo
sinto o amor na alma
em incêndio essencial
tormenta, cometa
e vendaval

Inserida por Sydor

o que cabe no silêncio

todas as palavras do mundo,
as promessas
e quase todas as brigas.
todos os sofrimentos
as alegrias,
e tudo aquilo que quero que me digas.
todo o encantamento,
o barulho, o borbulho
e tudo que a alma investiga.
toda a maldade,
o perdão,
e toda a fadiga.
todo o carinho,
a raiva, o amor
e tudo que a vida obriga.
todo som,
o canto
e tudo aquilo que mastigas.
o suicídio,
o fim da linha
e tudo que intriga.
o começo da história,
a memória, o resumo
e todo o trabalho de formiga.
todo o perfume,
o desejo, o ensejo
e toda palavra bendita.
tudo, tudo, tudo cabe
no silêncio
que periga, mendiga, religa
e está lá, na velha cantiga.

Inserida por Sydor

estampas de solidão

uma joaninha que pousa em folha
ou um jogo de xícara e pires
uma mulher que entra no mar
ou um envelope vazio
uma taça, um vinho e um saca-rolha
ou uma ilha pra cá do arco-íris

como uma tarde de frio
ou um vaso de cristal
uma bola de sabão, um balão
ou um longo e agudo assobio
um sol depois do vendaval
ou um observador que vê constelação

como um barquinho em meio ao temporal
ou um percurso de rio
um momento de decisão
ou uma cera sem pavio
um retrato de funeral
ou um violão vadio

assim é a solidão
e um texto sem final

ponto

cortei pedaço de mim
fatia de prazer, a parte do amar
cortei o que era sem fim.
bamba, amputada, dolorida
me despedaço pela rua
suicídio com bala de festim.
na despedida, o olhar do erro
da vontade e do medo
o desejo dos beijos de carmim.
me reviro no sofrer
na lembrança do sonho
no trevo desfolhado do jardim.
arranco imagens e me enterro
o tempo não existe
o amor é estopim.

Inserida por Sydor

trem

minhas malas estão prontas
sei que não voltarei mais
nunca mais.

arrumei tudo,
shampoo, escova e tamanco
aquele vestido de borboletas
e a bolsa azul.

etiquetei a bagagem
meu nome, meu sangue
toda minha história e dois cadeados
três cartas de lembrança
e o velho anel.

pesam muito minhas malas
a vida inteira ali dentro
mais a saia reta e o scarpin marrom
dois amuletos,
a fotografia dos meus pais
e as anotações para o futuro.

não voltarei mais
nunca mais

e levo na bagagem a certeza
da vida que passou
a camisa de gola rolê
os cartões para colocar no correio
e todas as esperanças.

embarcarei no trem das oito
as duas malas prontas
a vida inacabada
e a certeza que não voltarei

não me falta nada
carrego o creme para as mãos,
a calça de botões dourados
e o crucifixo no pescoço.

na partida, nada ficará de mim
não haverá traço, marca ou memória.

passagem nas mãos
os documentos guardados
a coleção de lenços,
o casaco de frio, a imagem do santo
e a certeza que não voltarei mais.

voarei livre e leve
como se não tivesse comigo
as partituras da nossa música
a camisa verde de chiffon
e a maquiagem provisória.

levo tudo comigo
as malas cheias de vestidos
papeis antigos
e um biscoito para o caminho
e a certeza que não voltarei
que não voltarei nunca mais.

Inserida por Sydor

classificados

procuro por versos de amor
precisam ser singelos, claros, diretos.

têm que contar sobre uma vida inteira
dos elos dos amantes
e caber num único instante.

não exijo rima nem métrica
mas é obrigatório
a cor lilás do fim das tardes de verão

procuro por versos de amor
que escorram de bocas
molhadas em luas
e vidradas em beijos

opcional, tragam palavras novas
e que elas despertem vontades
e se transformem em música
não em música de ouvir,
em música de verdades

procuro por versos de amor…

Inserida por Sydor

grau

moro nos olhos do amado,
endereço definitivo,
onde começo e termino
sussurro e gargalho
desfilo e prometo.

ouço os seus olhos
como sol de manhã de primavera
feito brisa de janeiro
imensidão de espaço
nós de todos os laços.

o conjunto dos seus olhos
me diz que ele é meu
que me quer ser sua
que sou sua.

a voz dos olhos do amado
tem orvalho fresco
e canta música suave
que me inventa e me descobre
me mata, me move, comove.

são os seus olhos que
eu quero colados em mim
em linha reta ou em curvas
para o tato e a conversa.

Inserida por Sydor

justeza

toda mulher deveria ter um amor a lhe chamar de princesa,
e esse amor lhe pentear os cabelos
e lhe depositar flores frescas no colo
e beijar sua mão
e segurar-lhe nos braços
e pintar-lhe em quadro
e esquentar seus pés nas noites frias

toda mulher deveria poder, uma vez, se entregar sem medo
e receber doces e brilhantes,
e rir com graça para os feitos do amado

toda mulher deveria ser amada por seus modos femininos,
e suas variações de felina
e nadar nas próprias águas
e estampar notícias de jornal em declarações de amor

toda mulher deveria ter um homem para amar
e lhe convidar ao devaneio
e lhe improvisar jantares em jazz
e sabe-lo mais importante que todas as estrelas

toda mulher deveria amar o mesmo homem por uma vida inteira
e transformar a eternidade no dia de hoje
e lhe confessar, na ponta dos dedos, os sentimentos
e fazer convite à maré cheia e à lua nova
e lhe sentir sol de meio dia

toda mulher deveria conhecer o amor nos olhos do amante
e lhe servir de espelho

Inserida por Sydor

troco cárcere privado por gafieira de sábado

Ah! se eu te dissesse sim, tudo estaria resolvido:
sem romance,
frango assado aos domingos,
escuridão à noite,
clima familiar,
nada de relance.

Se eu colocasse o anel, tudo seria encaminhado:
mudaríamos o recenseamento,
humores às últimas conseqüências,
contas a pagar,
televisão e sofá,
novo financiamento.

Se eu caísse na sua, o problema seria outro:
abertura de falência,
horário não respeitado,
visita da família,
disputa pelo controle,
falhas na jurisprudência.

Ah! se eu vestisse o véu, a vida mudaria:
férias em dezembro,
prisão domiciliar,
rotina ordinária,
chá das cinco,
sem primavera em setembro.

Inserida por Sydor

com o infinito ao redor

sem saber da chuva que chovia
nem ligar para a moral
dos grandes homens
dormia na rede.
e o dia passava lá fora
sem lembrança
porque o sono não era vida
nem formava história.
sonhava barulho dos sapos
passarinhos e água que caía.
sonhava com uma baía
e uma ilha
com grama do continente
e uma chaminé que soluçava
fumaça azul.
e no sonho ouvia
um galo chorando
o latido longe de um cachorro velho
e os primeiros grilos do mundo.
sonhava com brisa fresca
com sol que não existia
e risadas de meninas.
sonhava os prazeres
carne e espírito
cama e mesa
fluidos, toques e versos.
sonhava beijo e anoitecer
gafieira, pastel, cuba-libre.
dormia.

Inserida por Sydor

invisível

não posso ser vista
nem de frente
nem do avesso
nem nos olhos
nem nos versos
nenhuma risca
nada sobra de mim
sou estrela sem brilho
e sem história
feia, morta, torta
infeliz trajetória
nenhuma pista

Inserida por Sydor