A moça dos olhos fúnebres
Eu percebi, depois de muito pestanejar que aquela moça era mais do que mostrava-se, muito mais do que o mundo estava adaptado a ver. Ela era uma mistura de doçura e acidez, caos e calmaria, turbulência e dias quentes. De fato, aquela moça era um ser ainda tão indescritível que eu, na ânsia de desvendá-la, decifrei com meus olhos míopes um dos tantos labirintos construídos em seu coração.
Aos outros olhos aquela moça fez-se sorrisos e cuidados. Sem pedir nada se foi ouvidos para aqueles que melancólicos necessitavam de acalanto. Era a ponte, o pedestal, a âncora dos naufragados, a luz dispersa na escuridão. Ela nada pedia ao mundo, doava-se de coração aberto e por vezes esquecia suas próprias e silenciadas dores, ia, com o sorriso brilhando sobre a face, cuidar dos corações alheios, das almas que procuravam incansáveis por paz.
Mas quem diria que aquela moça –a do sorriso largo- traria consigo o segredo do sentir? Quem, neste mundo tão individualista, olharia para aquela moça aparentemente forte e veria uma menina com medos, receios e dores? Creio que nessa troca de sentir, poucos pararam para ouvi-la e raras pessoas a conheciam de fato.
Porque ela, ah, ela era mais do que o rosto dizia, do que a risada falava. Ela era a maturidade de uma mente firme, cheia de princípios e verdades. Ela era o medo do erro, a tentativa árdua dos acertos, o receio do não conseguir. A vi por muitas vezes gargalhar com uma sombra pairando no olhar, e entendi por fim, que o silêncio é necessário e revelador quando deixamos o coração trocar confidências.
Hoje talvez eu ainda não a conheça, pois esta moça é mutável como o vento que dança em seus cabelos, mas acredito que sei enxergá-la como poucos conseguem. Eu vejo seu coração, falo com sua alma, desvendo suas entrelinhas. Mas acima de todas as coisas, eu aceito os seus silêncios.
Mas ela é complexa, difícil, temperamental. Ela é um furacão, meu amigo, daqueles que viram a vida de um homem e atormentam até a alma. Ela se doa demais, se joga as cegas e sofre por ter um coração tão malogrado de sentimentos e doações não reciprocas. Poucos a entendem. Muitos a criticam. E você, meu bom amigo, ah, você tem a suprema sorte de ter em mãos o caos e a calmaria de uma alma apaixonada.
Olha moço, sei que as coisas têm andado meio estranhas, e que vez ou outra a saudade aparece na sua porta como uma velha amiga a pedir abrigo, sei que abre, que conversam e que você mostra nossas fotos, aquelas em que estamos abraçados, sorrindo e exibindo uma felicidade plena.
É, moço, o tempo –aquele escritor de partidas e chegadas - transcorreu rapidamente, e hoje estamos aqui sob uma distância de mares a ocupar a mesma cidade. Estranho vê-lo mas não encontrá-lo. Não, não me leve nem me julgue mal, mas é que o moço do sorriso largo não é o mesmo que hoje sorrir para fotos tão mecanicamente. Não consigo encontrá-lo. Sei que está perto, que anda e que talvez continue a fazer as mesmas coisas de autrora, mas algo mudou em seus olhos, pois o negro brilho que me encantava fora trocado por umborrãosem cor.
Mas não, peço que não se preocupe, pois não vouperturbá-lo com meu cuidado demasiado exagerado.Não, moço, pode continuar a andar pelas ruas com seu sorriso grande e falsamente feliz, eu sei, ou melhor, nós sabemos o quão falso ele é. Continue, dance, divirta-se, e se apaixone, o mundo está aos seus pés e você é dono de sua alma, use-a como quiser. Mas eu sei que nos últimos minutos de seu dia, aquele em que você deita a cabeça no travesseiro e respira aliviado, sua mente projeta meu rosto e você ouve minha risada alta, exagerada. Você pensa no que poderíamos ter sido, nos planos e nos momentos em que vivemos juntos, e afirma, ainda a contragosto que nenhum outro amor será tão forte, intenso e sim, exagerado –pra combinar com meu jeito de ser- do que o amor que sentimos um pelo outro.
E então você dorme.
Mas ela não tinha nada. Digo nada de especial que a fizesse ser diferente das demais moças que, solitária navegam passivas na suave brisa das madrugadas. Não! Olho-a e não consigo compreender essa singular criatura vestida de negro, pele alva e cabelos bagunçados. Todavia, estou a imemoriáveis minutos imersos na moça que como disse nada tem de especial.
Ela não me viu. Chegou como quem nada quer neste bar de boêmios e solitários homens de coração partido. Sentou. Pediu um Martini e desde então permanece na mais reclusa solidão. A moça que nada tem não quer nada além de sentir o doce gosto álcool.
Mas eu, por algum motivo ainda desconhecido permaneço a fitá-la. A moça solitária não ver ninguém, entretanto, todos a observam. Bonita? Não! Mas a algo nela que desperta abismo. Ela é um pulo no escuro de uma madrugada feita para bêbados e corações frustrados. A moça –aquela que nada quer- mexe comigo porque o seu silêncio me ofende. Deveria gritar, esbravejar, e sim, chorar porque seus olhos transmitem dor e solidão, mas não, permanece no mais íntimo silêncio porque aceitou a sentença que a vida lhe deu. Aceitou que o mundo vai agredi-la, por pura incompreensão. Por isso bebe.
Bebe, moça! Afoga tuas mágoas nesse Martini com gosto de lágrimas, decepções e amores rasos. Embriaga-te. Perde tua lucidez. Vira o que quiser, pois ao beber o mundo é seu. Tu poder tudo, moça! Tu tens a loucura dos bêbados. Tu és noite, álcool e silêncio.
Mas ela nada quer. Nada pede. Ela não fala, não chora, não ama. A moça levantou-se embriagando os bêbados com seu cheiro adocicado de flores e Martini. E foi-se. Fugiu para o mundo que amanhecia e que nada tinha a lhe oferecer.
Estou me afogando em águas negras e profundas! Meu corpo está cansado. Sinto frio. E tudo a minha volta é escuridão. Mas enquanto isso vejo a vida seguir para muitos, eles caminham, traçam seus objetivos, amam, sofrem e morrem, porque no final tudo é igual para todos. A morte é iminente. Porém, estou me afogando e sei que chegará o momento que não retornarei do fundo deste rio negro e espesso. Vou me tornar parte dele. Água, talvez. Pedra, quem sabe. Deixarei de ser humana e me tornarei negra como a noite que envolve minhas palavras, e ainda sim o mundo vai continuar sua caminhada. Todos a procura do bem ideal, mau sabendo que no final disso tudo só existe a morte. Vamos todos para o fundo do rio. Todos para a mesma escuridão."