Amanhã
E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje.
Amanhã não sei mais das minhas prioridades: posso querer dormir com pijama de criança até meio-dia, pagar 500 reais numa saia amarela...
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada – então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.
Só estamos aqui porque nos recusamos a morrer. Somos persistentes como o frio, para sempre aprisionados sob o gelo.
Primeiro, o clima mudou. Os negacionistas sabiam o motivo, mas nos sentenciaram com mentiras. A guerra deixou a Terra ainda mais quente. O gelo derreteu e todas as espécies chegaram ao fim. Então, cientistas tentaram esfriar a Terra para reverter o dano que tinham semeado. Mas, em vez disso, a congelaram até seu núcleo.
Podem tirar nossos membros, nossas crianças, nossos líderes… Tentam tirar nossa dignidade. Porém, os sobreviventes dirão que foram dignos à beira da morte. Quanto mais roubam de nós, mais humanos viramos.