Amanhã
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje? Não quero saber de medo, paciência, tempo que vai chegar. Não negue, apareça. Seja forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto.
Amanhã não sei mais das minhas prioridades: posso querer dormir com pijama de criança até meio-dia, pagar 500 reais numa saia amarela...
E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje.
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada – então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.
Só estamos aqui porque nos recusamos a morrer. Somos persistentes como o frio, para sempre aprisionados sob o gelo.
Primeiro, o clima mudou. Os negacionistas sabiam o motivo, mas nos sentenciaram com mentiras. A guerra deixou a Terra ainda mais quente. O gelo derreteu e todas as espécies chegaram ao fim. Então, cientistas tentaram esfriar a Terra para reverter o dano que tinham semeado. Mas, em vez disso, a congelaram até seu núcleo.
Podem tirar nossos membros, nossas crianças, nossos líderes… Tentam tirar nossa dignidade. Porém, os sobreviventes dirão que foram dignos à beira da morte. Quanto mais roubam de nós, mais humanos viramos.
Sou como o nitrogênio. Esse elemento já foi considerado inútil por ser pouco reativo. Mas, ao ser convertido em amônia, ele se torna um fertilizante essencial para as plantas.
Por isso dizem que não se deve fazer planos de vida. Para que um emprego se o amanhã não é garantido?