Abismo
Sou o abismo perdido entre o não ser e a escuridão. Sou o desejo e alma, correndo nua na meia-noite esquecida, procurando aquilo que não é, mas pode vir a ser; o verdadeiro anseio, a paixão.
“Diante de Deus, está sempre a descoberto o abismo da consciência humana: que poderia haver de oculto em mim para Deus, por mais que eu não quisesse dizer a verdade? Conseguiria apenas ocultar Deus aos meus olhos, mas não poderia ocultar-me dos seus”.
Agostinho
O que temos a ganhar viajando para a lua se não conseguimos atravessar o abismo que nos separa dos outros? Essa é a mais importante viagem de descoberta; sem ela, todas as outras são não apenas inúteis, mas desastrosas.
Na hora em que a terra dorme
enrolada em frios véus,
eu ouço uma reza enorme
enchendo o abismo dos céus
Abismo
Talvez o abismo nos engula
Talvez cheguemos a Atlântida
Talvez não tenhamos mais a força
de mover montanhas.
Mas somos o que somos.
Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.
É o vazio e o abismo que estão permanentemente sob seus pés, num vórtice tempestuoso que pode engoli-los a qualquer momento. Pois a morte o espreita com sua face tenebrosa e hedionda em todos os instantes.
Não tenha medo de dar grandes saltos. Você não consegue atravessar um abismo dando dois pulos pequenos.
Liberdade é quando sinto corpo e a alma
despidos de pudores
é quando posso voar
dar asas a imaginação
libertar os sentidos
abraçar o espaço do nada e me sentir
invadida pelo tudo
deixar o vento acariciar a pele
despenteando os cabelos
embalada pelo som do silêncio
estar a beira do abismo
e dançar, dançar...
NO CENTRO DO FURACÃO
Vórtice, voragem, vertigem: qualquer abismo nas estrelas de papel brilhante no teto.
Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não — sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la — que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar — não é dessa forma que eu a desejo. Ah essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos. Melodramática palavra, de voz rouca igual à daquelas mulheres que, como dizia John Fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem.
Espio no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio, inquieta ainda mais: “Aquilo que sorve ou devora”. E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. “Qualquer abismo” — continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas asas do Anjo da Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo — e o condão é a frase “isto também passará”. Sim, e leio então: “Tudo que subverte ou consome” — paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de maiúsculas implícitas — vorazes, voragem—, abismais.
Eu estava lá, no centro do furacão. E repito palavras que são e não são minhas enquanto o porteiro do edifício em frente toca violão e canta, e a chuva desaba outra vez, e peço: por favor, me socorre, me socorre que hoje estou sentido e português, lusitano e melancólico. Me ajuda que hoje tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virginia Woolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encostar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado de por um instante não ser mais eu, que hoje e não me suporto nem me perdoo de ser como sou e não ter solução. Me ajuda, peço, quando Excalibur afunda sem volta no lago.
Ela se debruça sobre mim, me beija com sua grande boca vermelha movediça. Tenho medo mas abro minha boca para me perder.
Ela repete baixinho em meus ouvidos nomes cheios de sangue — Galizia, Ana Cristina, Júlio Barroso — enquanto contemplo o céu no teto do meu quarto, girando intergaláctico em direção a ER-8, a estrela de bilhões de anos, o cadáver insepulto para sempre da estrela perdida nos confins do Universo. Choro sozinho no escuro, e você não enxuga as minhas lágrimas. Você não quer ver a minha infância. Solto nesse abismo onde só brilham as estrelas de papel no teto, desguardado do anjo com suas mornas asas abertas. Você não me ouve nem vê, e se ouvisse e visse não compreenderia quando eu abrir os braços para Ela e saudar, amável e desesperado como quem dá boas-vindas ao terror consentido: voragem, bem-vinda.
Voragem, vórtice, vertigem: ego. Farpas e trapos. Quero um solo de guitarra rasgando a madrugada. Te espero aqui onde estou, abismo, no centro do furacão. Em movimento, águas.
O Estado de S. Paulo, 4/2/1987